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Nunca falei publicamente sobre isto mas acho que chegou a hora: durante muitos anos, demasiados anos, senti-me discriminada, fui alvo de olhares preconceituosos e tive de lidar com o peso desse julgamento dos outros, por ser diferente deles. Faziam-me sentir mal na minha pele: esta pele tom de lula, contrastando com a de todos os meus amigos, que de maio a outubro ostentavam um pantone 479, que é aquele tom de castanho que Cinha Jardim apresenta o ano inteiro. Se na adolescência tinha medo de o confessar, na idade adulta passei a assumi-lo sem medos. Mais do que sair do armário, saí daquele Volkswagen Lupo em que ia com as minhas amigas para a Costa da Caparica. Pedi que não me incluíssem mais nesses planos, admiti de uma vez por todas, perante a sociedade portuguesa, ainda tão conservadora nessa matéria, que não gostava de praia. Ser português e não gostar de praia é quase um crime de lesa-pátria. Acredito que os únicos a experimentar semelhante sensação são os que admitem não gostar de futebol. Se bem que, nesse caso, abre-se sempre uma mui sexista exceção para as mulheres.
No caso de ter os cromossomas XX no seu ADN já se considera natural que não aprecie ver 22 gandulos com cromossomas XY a correr atrás de uma bola. No caso de quem não aprecia praia, não há cláusula que nos salve: não interessa se somos homens ou mulheres, novos ou velhos, solteiros ou casados... Se não gostamos de praia entramos diretamente para a categoria "gente esquisita, em quem não se pode confiar". Nem sei se a Constituição não fará menção a isto, tal é o incómodo demonstrado pelos meus compatriotas de cada vez que faço esta revelação... Vejo no olhar deles uma perplexidade raiada de medo e leio-lhes o pensamento: "O que é que ela ficará a fazer naquelas horas, dias, semanas e meses que nós passamos na praia? Estará a assaltar casas com um daqueles gangues de ucranianos especialistas em abrir portas blindadas sem recurso a chave? Eles realmente são tão pálidos quanto ela...".
Mas eis que, sem que nada o fizesse prever, em 2020 sou acometida por uma súbita vontade de ir à praia. Enquanto todos barafustam a propósito das novas regras, apresentadas pelo Governo, questionando a sua pertinência, o seu realismo ou até a sua legalidade, eu faço a única pergunta que interessa: "Porquê só agora?". Porque é que num país com tantos quilómetros de costa, só agora foram criadas normas? Até aqui as praias eram uma espécie de faroeste, territórios sem lei. Ok, algumas avisavam-nos, à entrada, de que não podíamos levar cães e, uma vez lá dentro, havia uns miúdos de fato de banho laranja que nos diziam se e quando podíamos ir ao mar, e que quantidade de superfície corporal podíamos demolhar. Mas tudo o resto era deixado ao critério de cada um... Aquela frase, tantas vezes repetida, "a nossa liberdade termina onde começa a liberdade dos outros" é muito linda, mas o problema é que, no Algarve, em agosto, a liberdade dos outros começa logo ali, colada à nossa toalha. Foi, por isso, com grande alegria, que li umas das primeiras regras desta época balnear com o alto patrocínio covid-19: distanciamento físico recomendado de metro e meio entre utentes, e afastamento de três metros entre chapéus de sol.
Acho pouco mas acredito que possa ser um bom começo. Talvez as pessoas lhe tomem o gosto, e descubram os encantos de estar na praia sem roçar com o dedo mindinho do pé na lancheira da família do lado, e sem ouvir a conversa do casal de trás mais alto do que a rebentação. O facto de cada pessoa ou (pequeno) grupo só poder alugar toldos durante o período da manhã ou da tarde vem acabar com outro flagelo: o da malta que faz gala em passar dias inteiros na praia. Chegam antes das dez e só saem quando já nem se vê bem onde é que se está a pôr os pés: se em cima de uma duna ou de um castelo de areia construído ao arrepio de todo e qualquer PDM por uma criança. Falando em brincadeiras na praia: "Interditas atividades desportivas com duas ou mais pessoas", diz o manual de conduta. Esta norma vem acabar, de uma só vez com: peladinhas jogadas por cepos que julgam ser o novo CR7 e acabam por acertar sempre com a bola na cabeça de uma idosa, e casalinhos que jogam raquetas, uma modalidade tão estúpida que o seu inventor nem se deu ao trabalho de inventar um nome, ficou-se apenas pela designação do objeto...
A ideia de criar um sentido único de circulação no areal também me agrada, e agradará a todas as pessoas que tenham um familiar do qual desejem livrar-se. "Sim, tio, vá fazer uma caminhada à beira-mar. Depois não pode é voltar para trás, mas não faz mal. Encontramo-nos noutra altura, noutro verão qualquer".
*Humorista