O Tribunal Constitucional reprovou um conjunto de normas previstas no Orçamento do Estado para 2014, que haviam sido negociadas com os nossos credores externos e que visavam fazer cumprir objetivos de correção das contas públicas a que nos propusemos, ao abrigo do memorando de entendimento que permitiu apoiar o país com um empréstimo de mais de 60 mil milhões de euros.
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No essencial, o tribunal colocou por terra as opções fundamentais de diminuição de despesa previstas naquele documento. Considerou inconstitucionais quase todos os ajustes nos vencimento do funcionalismo público, nos subsídios de desemprego e doença, bem como a intervenção nas pensões de sobrevivência. O impacto da decisão é de cerca de 0,5% do PIB e, bizarramente, só é aplicável a partir do início de junho!
Para quem beneficia circunstancialmente das reposições salariais agora decididas é uma boa notícia; para os que fazem oposição ao Governo na lógica de se oporem à supervisão da troika e a esta Europa, é matéria para se rejubilarem; mas para quem vive com os pés assentes na terra, mesmo que, como eu próprio, tenha dúvidas quanto ao rumo que está a levar a União Europeia e o nosso próprio país, as decisões do Palácio Ratton só nos podem colocar os cabelos em pé.
Por variadas e preocupantes razões.
Pela forma como foram apresentadas aos portugueses, pelo momento escolhido para o fazer, pela substância das mesmas.
Para os que viveram, ou visitaram através da leitura ou de imagens, o pós-25 de Abril imediato, esta novela, que tem como vedetas os juízes do Tribunal Constitucional, é um verdadeiro PREC (designação por que era, abreviadamente, qualificada a confusão protorrevolucionária de 1974/75). Um PREC "light", em que o voluntarismo ideológico radical de alguns, felizmente poucos, militares barbudos e cabeludos é substituído pela circunspeção de um conjunto estrito de togas. Com uma diferença. O radicalismo de então poderia ser irresponsável, mas transpirava de autenticidade e pureza. O radicalismo circunspecto e burocrático de agora, tão pouco responsável como o de então, é todavia mais perigoso, já que assenta na pseudojusteza de decisões de um órgão de soberania com dignidade constitucional.
No entanto, toda a leviandade suicidária de há 40 anos está aí em estado puro.
Em primeiro lugar pelo vedetismo "hollywoodesco" com que se apresenta.
Decisão tomada no maior dos secretismos, enquadrada com um suspense digno de Hitchcock, é depois divulgada não através de um sóbrio comunicado distribuído à Comunicação Social, mas sim no contexto de uma conferência de Imprensa, em "prime time", com os juízes alinhados com um ar solene, qual batalhão Jedi na Guerra das Estrelas. Como se tal não bastasse, o senhor presidente do Tribunal galopou de imediato num pingue-pongue de perguntas e respostas, que prolongou por dezenas de minutos a declaração decisória. O exuberante José Mourinho, que aprecio em particular, é bem mais contido nas "flash interview".
Atitude globalmente condenável. Este, como qualquer outro tribunal, só ganha em ser discreto, distante e defendido dos holofotes da ribalta. Tenho a certeza de que esta saga colorida não é bem vista pela maioria dos contidos e capazes magistrados portugueses, onde cada vez ganha mais terreno a tese de que o Tribunal Constitucional era substituído, com vantagens, por uma secção específica do Supremo Tribunal de Justiça.
O veredicto do Tribunal é igualmente perverso pelo "timing" escolhido para a sua exteriorização. Poderia ter sido decidido há várias semanas, o que permitiria uma avaliação salvífica da situação, quando da última visita da troika a Portugal. Poderia também sê-lo na data limite, em meados de junho, ou seja após a reunião do FMI, que fecharia formalmente o dossier resgate a Portugal. Este meio-termo, em plena reposição de equilíbrios e consequente vazio de poder nas instâncias europeias, é macabro e totalmente insensato.
Finalmente, a substância das decisões. Não sendo jurista, não me vou cingir a uma tecnicidade apreciativa para a qual não tenho competência, nem eu, nem a maioria dos cidadãos. Todavia, quer a maioria deles quer eu próprio somos suficientemente lúcidos para questionar muito do que foi decidido.
Contestar a aleatoriedade decisória, pois é de aleatoriedade discricionária que se trata quando as decisões estão longe de ser unânimes dentro do próprio Tribunal. Aleatoriedade porque eram inadivinháveis "a anteriori" pela maioria dos juristas e constitucionalistas de primeira linha, porque optam, "ad hominem", por conceitos qualificativos de equidade, justiça ou solidariedade, impossíveis de vislumbrar em qualquer tratado de direito, porque não indiciam minimamente os limites de decisões alternativas futuras. Trata-se, pois, por mais que isto doa aos doutos juízes, de uma decisão eminentemente política, ou pelo menos suscetível de ser interpretada como tal.
Passos Coelho não surfou esta onda e fê-lo bem. Tal fragilizaria irremediavelmente o Governo e descredibilizaria definitivamente Portugal. Ao pedir uma aclaração do acórdão, está a tomar uma atitude corajosa e responsável. Nestas condições, Portugal não pode garantir aos seus parceiros internacionais que é capaz de cumprir os seus compromissos. Os agudos, de curto prazo, mas também os estruturais, como os que têm a ver com o cumprimento do Tratado Orçamental.
Eu não gosto nem acredito nos excessos das atuais políticas de austeridade, não tenho fé nos atuais líderes europeus, mas não quero que este Governo, ou qualquer outro no futuro, com Seguro, Costa ou com quer que seja a liderá-lo, seja refém de um novel Conselho da Revolução que, escrutinando a governação ao dia, paralise o país e o atire para o caos, colocando mesmo em causa toda a essência do regime.