Em 1973, um político português cujo nome não vem para o caso, num registo discursivo tido por adequado para quem estava então no exílio, causticou um dia, por escrito, a ditadura militar brasileira.
Corpo do artigo
Veio o 25 de Abril e o político viu-se com responsabilidades no Portugal democrático. Quando se decidiu juntar, numa publicação, alguns dos seus textos do passado, olhou essa referência e, com sentido de prudência, elidiu-a. É que os mesmos generais que, desde 1964, perseguiam, prendiam e mandavam assassinar cidadãos brasileiros eram, afinal, os interlocutores da nova democracia portuguesa, isto é, do governo a que ele pertencia.
Lembrei-me deste episódio ao ver por aí alguns "heróis" a reclamar das nossas autoridades uma "atitude", em face da eleição de Jair Bolsonaro. Li mesmo remoques pelo facto do presidente da República e do primeiro-ministro terem enviado mensagens congratulatórias àquele que será o seu novo contraparte, simultaneamente como chefe de Estado e chefe de governo. Posso perceber que não se goste do novo líder brasileiro (eu também não gosto), mas há que aprender que a boa gestão das questões de Estado não se compadece com humores políticos de conjuntura. E que, comparada com a sinistra ditadura com que a nossa democracia conviveu serenamente por mais de uma década, a legitimidade de Bolsonaro foi assegurada por dezenas de milhões de brasileiros.
Jair Bolsonaro é a figura que, nos próximos quatro anos, presidirá a um governo com o qual teremos de lidar, independentemente da nossa opinião sobre ele. Dirigirá um Brasil onde vivem e trabalham larguíssimos milhares de cidadãos portugueses ou lusodescendentes, cujos direitos e interesses queremos ver respeitados, o que só poderá ser feito num quadro de serena interlocução com as autoridades desse país. O Brasil é, além disso, destino de importantes fluxos de exportações nacionais, por lá há imensas empresas de capital português e ambos os Estados, para além de uma História comum que é um património não despiciendo, partilham hoje importantes ações no quadro da CPLP, bem como na promoção da língua que, tirado o sotaque, passa por ser a mesma.
Este é um momento feliz para Portugal? Sê-lo-á para alguns "bolsonarozinhos" da paróquia, a afiar o dente para uma esperada repressão contra aquilo que, pelo mundo, se habituaram a odiar. Para gente com princípios, a vitória de Bolsonaro só pode ser um tempo triste. Para o Estado português, que a todos representa, tem de ser "business as usual".
*EMBAIXADOR