A novela das pressões de Passos Coelho e do Governo sobre o Tribunal Constitucional tem tanto de descabida quanto indesejável para o bom funcionamento da democracia. E revela o que de pior podem ter os jogos políticos baseados em demasia na tática e pouco na estratégia: uma confrangedora indiferença pela memória e até pela inteligência dos cidadãos, em particular dos que têm a capacidade de eleger e ser eleitos e ainda mantêm o bom hábito de a exercer.
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Pelo menos esses cidadãos que participam ativamente na vida política sabem seguramente destrinçar a natureza humana das outras naturezas que as circunstâncias inscrevem nas nossas vidas. Não fora esta separação e nada do que é formal em democracia resistiria à mais insignificante das suspeições.
É essa destrinça que nos permite aceitar que, até prova séria em contrário, cada juiz do Tribunal Constitucional julgará em boa consciência e apenas à luz dos seus conhecimentos se o Orçamento de Estado para 2013 estará, ou não, total ou parcialmente conforme à Constituição da República. Pensar o contrário seria aceitar que os juízes analisem e sentenciem apenas a partir das suas origens político-partidárias, o que, no caso do Tribunal Constitucional, nos levaria a rejeitar aqueles dos seus membros indicados pelos partidos com assento na Assembleia da República.
Esse tipo de desconfiança relativa ao respeito da ética republicana, ou seja, da lei, a que todos estamos obrigados, em especial no desempenho de cargos públicos, mina as instituições para além das imperfeiçoes e desconformidades pelas quais possam passar em razão dos deméritos deste ou daquele serventuário falho de escrúpulos.
Essa desconfiança tem sido aumentada pela insistência no tema de analistas interessados em influir nos desfechos dos jogos políticos, tentando nesse jogo de bastidores reforçar os seu poder mediático. Porém, poucos de entre eles seriam capazes de ganhar uma eleição para presidente de junta de freguesia e ainda menos governar a mais pequena das nossas autarquias.
Assim, não faz sentido tentar encontrar termo ou medida para a pressão que o primeiro-ministro tem feito para tentar que os juízes do Tribunal Constitucional voltem a colocar, como fizeram o ano passado, eventuais inconstitucionalidades entre parêntesis. O que seria para Passos Coelho o modo mais ágil de cumprir o acordado com a troika segundo a chave de austeridade negociada. Isto parte do jogo político e cabe aos juízes do Tribunal Constitucional ponderar se há, ou não, inconstitucionalidades e, se as houver, se elas assumem uma gravidade que não cabe em novo parêntesis.
De resto, só desmemoriados e manhosos não reconhecerão pressões semelhantes no passado, como as forças de bloqueio de Cavaco Silva, então primeiro-ministro.