A primeira vez que ouvi o anúncio, distraidamente, pensei tratar-se de uma daquelas caricaturas a que os novos publicitários recorrem para criar um contexto absurdo. O assunto era futebol. O tom era tão "tempos antigos" que cheguei a pensar ter morrido mais um jogador ou director da selecção de 66. Não liguei. Um ou dois dias depois, ei-lo de novo.
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Presentes todos os tiques do que há de mais "kitsch": a voz cava, a música de fundo estilo Vangelis, uma conversa a fazer lembrar os tempos da velha senhora. E não, não havia ali qualquer pretensão de criar um quadro ridículo, para lhe contrapor um outro. Era, pura e simplesmente, mesmo assim que se queria a coisa.
Estou a falar do novo anúncio de uma marca de bebidas alcoólicas, patrocinadora da selecção nacional de futebol. Se a voz e a música, só por si, já eram de mau gosto, o guião é inenarrável, oscilando entre o lugar-comum mais primário e o lema salazarento, passando por alusões a fazer lembrar bruxarias e práticas afins.
Não garanto que o texto seja exactamente este mas anda lá próximo. "Onde quer que estejam puxem por nós" - eu não dizia? Há uma corrente que se transmite, uma força que os jogadores vão sentir. "Não vejam os jogos sozinhos!" - porquê? "Cantem o hino com a mão no coração" - parece patético mas talvez seja a maneira de garantir que, durante esse período, os outros não lhe roubam a carteira. "Cubram tudo de verde e vermelho" - eu bem dizia, é antigo. Se fosse de agora era "encarnado".
"Não discutam a equipa inicial" - ao melhor estilo salazarista. Com campanhas como esta, a marca rival não precisa de fazer um grande esforço para ganhar quota de mercado.
Como é que, quase 40 anos depois do 25 de Abril, pode surgir um anúncio com este teor? Não faço ideia quanto custou a respectiva produção. Não tenho dúvidas, porém, que há muitos profissionais envolvidos e que esta campanha não é fruto do acaso. Para se avançar com ela houve a percepção que este tipo de discurso e sugestões teriam receptividade.
Como é evidente, os publicitários às vezes enganam-se. No meu caso criou quase um sentimento de aversão, fez-me urticária, lembrou-me, em demasia, outros tempos que não são de boa memória.
Estas coisas não acontecem por acaso, repito. Terá havido a percepção de que, esmagadas pela austeridade, as pessoas precisam de algo que as faça esquecer as agruras do dia-a-dia, lhes crie esperança, as mobilize. Uma epopeia. O mar. A conquista do Brasil. "Yes, we can"! A mão no coração, depois da bandeira nas janelas. A cópia.
E, depois, nós. Não duvides da equipa inicial. Acredita. Está dado o mote e a táctica. O Governo vai à boleia. Sinal dos tempos? Não duvides da nossa política. Acredita. Não a discutas. Ou fá-lo baixinho, não vão os mercados ouvir. Paternalistas. "Se soubesses o que custa mandar". Não foram tão longe, mas andaram lá perto na reacção, parola (Ricardo Reis dixit no seu excelente escrito no Dinheiro Vivo), arrogante e com tiques de intolerância antidemocrática, a um manifesto ambíguo que se limita a pôr por escrito o que está na conversa e nas preocupações quotidianas.
Uma iniciativa cívica meritória, por mais vagas e discutíveis que fossem as propostas que tanto podem significar uma coisa como o seu contrário, por mais intelectuais estrangeiros (parolice com parolice se paga, e os média adoram!) que o subscrevam. Em vez da resposta sectária, pacóvia, acenando com o papão dos mercados e investidores internacionais, Governo e PSD andariam bem melhor se tivessem, em devido tempo, investido na educação financeira, explicando numa linguagem simples os dilemas que enfrentamos e as leis básicas da economia, entre as quais a de que não podemos gastar, indefinidamente, mais do que produzimos e como se poderá produzir mais.
Como diz Félix Ribeiro, é uma loucura acenar com 20 anos de austeridade.
Terá sido o tempo, a chuva? Está tudo muito bafiento, decadente, saudosista. O anúncio. A intolerância. A parolice. É imperioso primaverar, proclama Tolentino de Mendonça. Com a devida vénia, copio-lhe o título. Primaveremos. No dia-a-dia, na sociedade, na democracia.
O autor escreve segundo a antiga ortografia