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No termo da "primeira ronda" de contactos entre o PS e a Oposição, Louçã criticava o CDS por uma "visão fisiológica do Poder". É verdade que o Poder corrompe, mas o Poder relativo corrompe relativamente. E já é tempo de o Bloco deixar de presumir superioridade moral nestas matérias: os "exércitos de santos" (aqui, laicos) cabem mal nas dimensões deste regime.
E a verdade é que, descontando as obsessões do BE sobre Portas, deve reconhecer-se que o PP tem feito a sua obrigação. Esta é a de falar claro ao Poder: se os planos governamentais se ajustarem às ideias do CDS, muito bem. Senão, não. O BE diz, aliás, ir seguir a mesma via: antes os princípios do que os príncipes.
Está tudo muito bem assim, juntando-se à jura do PSD de "fazer oposição responsável". E à pré-proposta do PCP de colocar primeiro as ideias, e só depois as pessoas.
O PS, por seu lado, reclama "legitimidade" para avançar com o seu programa de governo, que afirma ter sido sufragado em Setembro.
Ou seja: à superfície, ninguém parece muito interessado em compromissos. Mas é preciso ir mais longe na análise. Estatisticamente, a esmagadora maioria dos diplomas aprovados na AR, nas últimas décadas, baseia-se na vontade expressa de mais do que um partido. Por outras palavras, o grupo vencedor nas legislativas tem sempre sabido arranjar mais apoios no hemiciclo.
Isto fica a dever-se a uma série de factores. Primeiro, nem toda a política é "ideológica". Muita actividade pós-eleitoral desenrola-se em torno de problemas, e não de doutrinas. Em torno de verificações, e não de pressupostos. É o que a ciência política anglo-saxónica chama, por exemplo, de "issue oriented politics", por contraste com "ideology-based politics".
Depois, tem de se reconhecer que há uma "zona central" do espectro político português - rudimentarmente, correspondendo ao PS e PPD/PSD, e por vezes ao CDS-PP - que possui mais pontos essenciais em comum do que fracturas, apesar das campanhas, das pessoas e dos ruídos. Costuma usar-se o exemplo das posições face à UE, à OTAN, à "economia de mercado", como prova dessa "comunhão fundamental", que origina também consensos parlamentares, dentro e fora da actividade legiferante.
Por fim, a natureza "social democrática", ou "anfíbia", dos dois partidos dominantes, faz com que, várias vezes, consigam trazer à mesa do exercício do Poder "esquerdas" e "direitas", conforme os assuntos a aprovar sejam mais "sociais" ou "empresariais", mais "libertários" ou "securitários", mais "progressistas" ou "conservadores", com toda a imprecisão e caricatura que possuem estes rótulos.
Os caminhos da concertação entre partidos estão assim traçados, com base na tradição e na realidade. Mas, antes de mais, precisa o Poder putativo de enviar sinais, por exemplo através da declaração política que o primeiro-ministro terá de fazer na AR, quando da apreciação do programa do Governo.
Ninguém espera que, nesse foro, o PM renegue os seus compromissos com o eleitorado. Mas ninguém acredita que, face ao perigo real de uma rejeição do programa, por uma maioria absoluta de deputados, Sócrates adopte uma postura de hostilização geral das oposições, ou insista em soluções que poderão originar a "bomba atómica". Isto é, a união de oposições díspares em torno de um voto negativo, que mostre mais o que não querem, do que aquilo que desejam.
Também assim, no exercício de direitos constitucionais, se respeitaria a vontade do eleitorado.