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Os órgãos de informação portugueses têm muitos defeitos, mas há um que, salvo desonrosas excepções, não se lhes pode apontar: o de não respeitarem a privacidade das figuras públicas. Com efeito, a nossa Comunicação Social, em geral, não viola a vida privada das pessoas, apesar de já ter havido situações repugnantes em que essa regra não foi respeitada. Estas situações, porém, pelo seu carácter excepcional, só confirmam aquela regra.
No entanto, este tema tem sido, recorrentemente, trazido ao debate público, não tanto pelo jornalismo sério, mas mais pela dinâmica da luta política e partidária. Vejamos alguns aspectos que não devem ser ignorados.
A vida das pessoas em sociedade estrutura-se em três dimensões. Desde logo, uma dimensão pública, que é aquela que assume maior relevância, pois tem a ver com a participação do indivíduo na vida comunitária, sobretudo com os contributos que cada um dá para os grandes debates públicos em torno do progresso, do desenvolvimento e, em geral, para as transformações não só nos planos político, económico, religioso, militar mas também nos domínios científico, artístico, desportivo, militar e cultural, entre outros.
Especial atenção deve ser dada à prática de crimes, os quais serão sempre do domínio público desde que as vítimas apresentem queixa. Caso contrário, um crime só poderá ser objecto de notícia se verificado em locais públicos. Fora dessas situações, entende-se que se impõe o dever de reserva porque se a vítima não apresentou queixa é porque, justamente, quis evitar a publicidade associada ao procedimento criminal, por vezes, tão ou mais prejudicial que o próprio crime. Já os chamados crimes públicos (em que, pela sua gravidade, o Ministério Público instaura procedimento, mesmo sem queixa de ninguém) constituirão sempre um facto do domínio público, seja onde for que ocorram, quer as vítimas queiram ou não.
Uma segunda dimensão tem a ver com a privacidade, a qual engloba aqueles aspectos da vida pessoal que não possuem interesse público, tais como as relações familiares, a religião que se professa, o lazer e os divertimentos pessoais ou tudo aquilo que não é especificamente dirigido ao público. Na perspectiva individual, consubstancia o chamado direito de não ser incomodado ou de ser deixado em paz.
A privacidade varia de época para época, de local para local e até com a notoriedade das pessoas. Uma figura pública terá sempre uma menor privacidade do que um anónimo cidadão. A privacidade numa pequena aldeia do interior (onde tudo se sabe) é menor do que nas grandes cidades (onde, por vezes, as pessoas que habitam no mesmo prédio nem sequer se conhecem). Em regra, exige-se que a vida privada das figuras públicas não interfira com a sua vida pública, muito menos que haja contradição entre uma e outra para não se cair na velha hipocrisia das «virtudes públicas e vícios privados». Convém realçar que as figuras públicas têm direito à privacidade, nomeadamente conversas privadas, mesmo em locais públicos.
Finalmente temos o domínio da intimidade da vida pessoal que abrange as práticas sexuais (desde que entre adultos, em privado e com consentimento), as doenças, os actos de culto, a pobreza que se esconde por vergonha, etc.. Trata-se de uma dimensão da vida das pessoas que só em casos limite poderá ser violada, mas mesmo aí com enormes precauções. Entende-se que só a curiosidade mórbida ou o voyeurismo sórdido justificam essa devassa, mais com o objectivo de agredir ou achincalhar os visados do que para realizar um interesse legítimo.
Confesso que eu próprio já em tempos me debati, como jornalista, com uma situação em que uma mulher que interrompera voluntariamente uma gravidez apareceu, anos mais tarde, integrada num movimento contra a despenalização do aborto. Estive tentado a divulgar o facto, mas acabei por não o fazer, simplesmente por sentir que não tinha esse direito.
Será sempre muito mais saudável uma sociedade que protege, sem reservas justiceiras, a intimidade das pessoas, sejam figuras públicas ou não, mesmo daquelas de quem não gostemos ou até que, eventualmente, combatamos.
Viver-se-á melhor numa sociedade assim.