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Infelizmente, a Assembleia da República perdeu esta semana a oportunidade de banir da nossa ordem jurídica uma norma perversa e brutal que condena às penas do inferno, em vida, quem careça da compaixão humana para pôr termo a um sofrimento insuportável e sem esperança. Para memória futura, aqui partilho a minha intervenção em defesa da "morte assistida", numa sessão parlamentar onde a substância das ideias foi derrotada pela contabilidade dos votos:
"A eutanásia é um crime e qualquer que seja o resultado da votação que vamos aqui realizar esta tarde - e da votação final que venha a ter lugar - a eutanásia continuará a ser um crime previsto e punido pelo Código Penal.
Quero saudar a coragem e a generosidade dos autores destas propostas de alteração ao Código Penal. Todas elas visam excecionar da criminalização da eutanásia uma situação peculiar, o caso, requintadamente cruel e impiedoso em que se acha alguém que sofra de uma doença sem remédio, de um ser humano que enfrente um sofrimento intolerável e, apesar de perfeitamente lúcido e consciente, se vê contudo impossibilitado de recorrer à solidariedade e à compreensão dos seus semelhantes para se libertar da tragédia que vive.
Sou subscritor, com muita honra, do projeto apresentado pelos deputados socialistas. Quem se tenha dado ao trabalho de ler as quatro propostas que temos em cima da mesa, reconhecerá, de boa-fé, que nenhuma delas cuida de se servir da lei para impor uma opção de consciência, para promover uma doutrina, uma crença religiosa, ou qualquer ideologia. Não queremos que o Estado se substitua à consciência de ninguém. Não queremos transferir para a autoridade pública a responsabilidade que recai sobre cada um de nós pelo nosso próprio destino, pelo sentido que damos à nossa própria vida.
Nós votaremos favoravelmente todos os projetos em discussão porque entendemos que é um imperativo da mais elementar decência excluir da lei a condenação brutal e infamante que hoje impende sobre uma escolha que pela sua natureza pertence ao foro íntimo e intransmissível de cada um.
Só a mais refinada hipocrisia pode sustentar que o novo enquadramento legal da morte assistida que aqui propomos, viola o direito inalienável à vida!!! Como é possível uma afirmação tão descaradamente farisaica? Se assim fosse... como justificar, então, a condescendência perante a pena de morte - cuja abolição celebramos com muito orgulho neste Parlamento, há menos de um ano, mas que persiste na ordem jurídica de muitos estados amigos e aliados? Como podem aqueles que agora se encarniçam contra a morte assistida permanecer indulgentes perante a guerra, as retaliações vingativas, a estratégia internacional da luta antiterrorista e toda a indústria de armamento, tão lucrativa? Infelizmente, a humanidade ainda está muito longe de assegurar uma proteção autêntica e consequente da vida humana, um objetivo tão desejável, quanto distante! E a vida, apenas na consciência humana, livre e individual, se reconhece, hoje, como infinitamente valiosa. E é neste sentido que a lei não se pode substituir à nossa liberdade nem interpor a vontade do estado entre a nossa consciência e o dever de solidariedade que, em situações pontuais e extremas, nos possa interpelar.
Noto, com especial apreço, que de todas as acusações que nos têm dirigido, há uma que até agora ninguém se atreveu a formular. Até agora, ninguém nos acusou de eleitoralismo! Que cada um retire daqui as conclusões que quiser... e que vote em consciência!
Dizia Fernando Pessoa pela voz do seu heterónimo Alberto Caeiro, no poema V, de "O guardador de rebanhos", que "o único sentido íntimo das cousas é não terem sentido íntimo nenhum". Acrescento eu, em rima imperfeita com o poeta, que o único sentido da vida humana é apenas aquele que cada um de nós, em consciência, lhe quiser atribuir".
* DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL