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Era fevereiro de 2024 e Paulo Núncio - vice-presidente do CDS, que na altura tentava reentrar no Parlamento às cavalitas do PSD - defendia iniciativas para "limitar o acesso ao aborto", sugerindo um novo referendo para inverter uma lei que dizia "profundamente iníqua" (portanto: injusta, perversa, má). Orgulhosamente, ainda se gabou de a coligação PSD/CDS de 2015 ter sido "dos primeiros Governos do mundo" a tomar medidas para "dificultar" a interrupção voluntária da gravidez (IVG). Nuno Melo apressou-se a dizer que Núncio não disse o que disse e Luís Montenegro desvinculou-se, garantindo que o aborto era um assunto "absolutamente arrumado". Argumento que serviu, por outro lado, para chumbar, no início deste ano, todas as propostas da Esquerda e centro-esquerda que visavam a aproximação da realidade portuguesa à europeia (como o alargamento do prazo legal da IVG, a eliminação de barreiras como o período de reflexão ou a regulamentação da objeção de consciência).
Desde que o atual líder parlamentar dos democratas cristãos sugeriu um retrocesso à lei, muita água passou debaixo da ponte e demasiada sujidade entrou com a abertura das comportas. O debate mediático fez-se acompanhar pela ressurreição de figuras conservadoras contra a interrupção voluntária da gravidez (IVG); a retórica machista e desinformada de personagens digitais em busca de poder e influência ganhou espaço; e eis que, recentemente, passou na televisão um anúncio antiaborto pago pelo fundador da Prozis – manipulador e mal executado, com imagens irrealistas que dramatizam o procedimento e a figura do Estado, manchando de sangue as mãos de profissionais de saúde zangados. Eu não gosto de batidos de proteína nem de manteiga de amendoim com pedaços e não ando aí a fazer anúncios para que ninguém os compre – mas, enfim, cada um faz o que quer com os milhões que tem na conta.
O empresário em causa desafiou Rita Matias a ser embaixadora de uma putativa “fundação de apoio às mulheres que escolhem a vida” – convite ao qual a deputada do Chega sorriu, agitando também a bandeira da “defesa da vida”. A mesma defesa que a levou, em 2022, a lamentar que uma criança de dez anos que engravidasse em consequência de uma violação não levasse a gravidez até ao fim. “Sou pela vida”, justificou na altura. Mas pela vida de quem? Da criança violada? Da adolescente que engravidou porque o namorado recusou usar preservativo? Da jovem imigrante que vive num quarto e vai ser despejada quando o bebé nascer? Da vítima de violência doméstica que o marido quer engravidar à força? Da sem-abrigo que vai deixar o recém-nascido num contentor do lixo depois do parto? Da mulher que, por razões de saúde, financeiras ou vontade individual, escolhe não trazer um filho ao Mundo? Do casal que recebeu um teste positivo indesejado e decide em conjunto não avançar? Ou das vidas que se perderam num país em que o aborto clandestino pré-despenalização – no tempo do “é proibido, mas pode-se fazer” – era a terceira maior causa de morte materna? Nenhuma delas. Porque para o movimento pró-vida, a vida que mais importa é a que não nasceu. Não deixa de ser irónico que algumas das vozes que, em defesa da liberdade individual, reclamam menos Estado na vida das pessoas queiram empurrar esse mesmo Estado para os úteros das mulheres.
O termo "pró-vida" é um engodo. Uma narrativa que mascara uma agenda conservadora e punitiva que visa controlar o corpo e impor uma moralidade única. Se esse movimento estivesse de facto comprometido com a vida, lutaria pelo acesso universal a educação sexual, a contraceção, ao apoio à maternidade e a sistemas de proteção social, em vez de se focar obsessivamente no feto, ignorando quem o carrega. Não são pró-vida, são pró-nascimento. Independentemente de tudo.