Velocidade furiosa, animais selvagens, doenças infecciosas. Três coisas que me vêm à mente quando penso em perigo. Mas estou a esquecer-me do principal: cartoons.
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Sim, bonecada humorística, nos tempos que correm, é mais temida que um tigre-de-bengala (não se deixem enganar pela bengala, não é um tigre reformado, é mesmo um predador feroz). Há dias ficámos a saber que o prestigiado "The New York Times" vai pôr fim aos cartoons na sua edição internacional. Quando li isto pensei "OK, só acabam na versão que é lida no resto do Mundo, continuam com os cartoons no jornal original". Era uma notícia menos chocante. Seria como acabar uma rubrica do programa do Zé Figueiras para a SIC Internacional... Mas não. Lendo o resto da notícia percebi que os cartoons da versão "caseira" do NY Times já tinham desaparecido há mais tempo (demonstro assim que não o leio habitualmente, terei de passar a armar-me em intelectual dizendo que leio o "Chelyabinskiy Rabochiy", sem precisar de tradução). Acabar de vez com os cartoons já corresponde à SIC suspender o Programa da Cristina. Desculpem este paralelismo mas desde que vi aqueles anúncios das obrigações da SIC não consigo pensar noutra coisa. Já comprei 50, na secreta esperança de que isso me dê direito a chegar lá e tomar decisões: "O senhor do Calcitrin está despedido, escusa de aparecer mais. Leve as frutas, leve tudo. Obrigada". Ora aí está uma coisa sem a qual passaríamos bem. Já os cartoons nos jornais não devíamos dispensar. Um cartoon na última página faz, muitas vezes, o resumo perfeito do dia. Sempre admirei, nos cartoonistas, não só o talento para desenhar, mas sobretudo a capacidade de síntese. Num desenho, sem palavras, ou com meia dúzia delas, conseguem captar o "ar do tempo". A partir de agora tenho de lhes admirar também a resiliência, porque começam a ser artistas em vias de extinção. A classe profissional ficou bem vista da pior maneira possível. Em 2015, a coragem, a roçar a inconsciência, de cartoonistas como Charb ou Wolinksi, provou que é possível dedicar a vida ao humor e levar isso muito a sério. Já antes do massacre no "Charlie Hebdo", vimos cartoons no olho do furacão, fossem sobre Maomé ou o Papa. Este último, em que víamos João Paulo II com um preservativo no nariz, é da autoria do português António. O mesmo responsável (irresponsável, dirão alguns) por um cartoon publicado em abril no NY Times, envolvendo um cão-guia com a cara de Netanyahu, conduzindo um Trump invisual. O cartoon foi retirado, e o jornal pediu desculpas, considerando-o "inaceitável" e "antissemita". Era o primeiro sinal do apocalipse, que se confirma agora, com esta decisão radical. A Direção do NY Times mostra ter tão pouco poder de encaixe para cartoons como os irmãos Kouachi. Nem sei se o inocente Calvin & Hobbes sobreviveria a esta vaga. É certo que não faz humor político mas há ali alguns comentários subversivos. Sobretudo do tigre! Isto lembra-me uma frase que ouvia muito na escola, quando punham a turma toda de castigo só porque um se tinha portado mal: "paga o justo pelo pecador". Que raio de lei é esta? Não fazia sentido na pré-primária e continua a parecer-me sem nexo. Sendo que neste caso do NY Times nem sequer há um pecador. Qual foi o pecado de António?! No mesmo jornal, o colunista Bret Stephens disse que "foi um ato surpreendente de ignorância do antissemitismo - e isto numa publicação que é hipervigilante para quase todas as expressões concebíveis de preconceito, desde a compensação do homem a microagressões raciais e transfobia". Esta coisa da hipervigilância fez-me tremer... lembrou-me o panóptico de Foucault (não leio o "NY Times mas li o "Vigiar e punir" para me poder armar aos cucos!). O que espero de um jornal não é que vigie e controle de forma apertada os seus cronistas ou cartoonistas. Eu quero um jornal que lhes dê liberdade para terem opinião. Várias opiniões. Diferentes. Mesmo que nos pareçam preconceituosas. Até porque isso pode ser preconceito nosso. Quem viu racismo num cartoon que retratava Serena Williams talvez seja mais racista que o seu autor. O mesmo para quem entrou em parafuso com o suposto antissemitismo de António.
Não se trata de achar ou não graça. Não acharei num dia, acho no seguinte.
Agora já não. Porque amanhã não há.
20 valores
Para João Miguel Tavares, não tanto pelo empolgante discurso no Dia de Portugal mas sobretudo pelas reações que provocou. A minha favorita foi a de Inês Pedrosa, que disse que convidar um "homem comum" foi um "ato antidemocrático". E eu que ia jurar que a democracia tinha a ver, precisamente, com a possibilidade de participação de todos os cidadãos... Inês Pedrosa afirmou que o seu discurso preferido, até hoje, foi o de Jorge de Sena em 1977. Estamos, portanto, perante uma hipster de discursos de 10 de Junho. "Antigamente é que era bom, depois ficou mainstream!".
*HUMORISTA