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Um ponto-chave no sucesso da "geringonça", e do "milagre económico" de Mário Centeno, esteve no fim do discurso da culpabilização do cidadão comum e da adoção de uma imediata retórica de confiança que alavancou a coragem e determinação de todos. Essa braveza que investe no elogio do povo, ainda que em determinadas situações seja claro exagero, é uma valentia governativa que opera pelo encorajamento ao invés de investir na destruição da autoestima, criando cisões entre os pares, insistindo na ideia de que merecemos todo o mal que nos acontece.
O que mais admiro em António Costa é que saiba manter a segurança diante do que levaria qualquer um ao pânico e, no uso do poder, não tenha sucumbido ao populismo fácil e à exploração da emotividade. Dito isto, claro que quando afirma que não falta nem se prevê que falte nada nos hospitais está sobretudo a rejeitar pressões e a dizer que aquilo que há é o que pode haver. É o mesmo que dizer que não adiantam lamúrias nem exemplos contrários. A verdade institucional está declarada, até que se torne efetiva, real.
Mais inusitado, para o futuro que se avizinha, é o compromisso categórico com a rejeição da austeridade. Admiro que o diga inequivocamente, e julgo importante que estabeleça como ponto de partida esta promessa. Mas, diante daquela que se prefigura como "a pior crise económica das nossas vidas", nem o super-homem dos primeiros-ministros poderia garantir aos seus cidadãos algo assim. Porque admiro que o diga? Porque continuo a pensar que o único modo de não afundarmos na mais pura desolação é induzir a sociedade em força, dotá-la de uma liderança com ganas positivas, energizada para uma solaridade que tentará manter a confiança e a autoestima.
A pior maneira de nos prepararmos para a crise seria a da antecipação do medo e da cretina, hipócrita, ficção de que o cidadão comum, aflito sempre com a mais elementar sobrevivência, é afinal culpado de querer comer, habitar, vestir, ter os seus 22 dias de férias numa praia atolada de gente.
A classe hospitalar já serve para exemplo da austeridade que chega. Convocada para a heroicidade que lhe vemos todos os dias, não tem conquistado mais do que umas palmadinhas nas costas. Não há enternecimento que, na verdade, produza uma melhoria de seus salários, um cuidado com a progressão das suas carreiras, uma prova concreta de que, afinal, entendemos a função vital do SNS e não o queremos perigar quando mais precisamos dele.
Claro que existirá austeridade, mas julgo que Costa está muito certo em resistir à estética da miséria. Tenho dito sempre que aquilo que move as pessoas numa direção inspirada e certeira é uma liderança que, consciente do desafio, mantém a coragem. Nem que depois pague pelo erro de haver acreditado demasiado. Prefiro que paguem pelo erro a escolherem, como covardes, abraçar imediatamente a derrota.
*Escritor