O hediondo crime do Seixal reagendou esta semana o tema da violência doméstica no espaço público (mediático).
Corpo do artigo
Anteontem, na Assembleia da República, Governo e diferentes bancadas parlamentares uniram-se na condenação dos criminosos a quem muitas vezes a Polícia poupa denúncias e o tribunal alivia sentenças. Precisamos de mais ação no terreno em prol da proteção das vítimas. E temos de proteger as crianças que ficam desamparadas em ambientes familiares extremamente violentos. Um agressor terá o direito de continuar a viver com os filhos como se nada tivesse acontecido?
O problema não é novo, mas as estatísticas paralisam-nos. Desde o início do ano, já morreram nove mulheres assassinadas às mãos de desprezíveis homens. Um relatório de 2016 da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima apresentava uma média de 100 mulheres semanalmente vítimas de violência doméstica. Neste tempo, nada melhorou. Há, portanto, criminosos à solta que protagonizam autênticas cenas de terror na intimidade de um lar. Polícia e tribunais parece terem pouco a dizer. Esta semana, o JN noticiava que a maior parte dos inquéritos por violência doméstica na comarca de Lisboa nos últimos três anos foi arquivada, tendo o Ministério Público deduzido acusação apenas em cerca de 15 por cento dos processos. Na Madeira, no primeiro semestre de 2018, arquivaram-se 300 dos 406 processos que deram entrada no tribunal centrados neste tipo de queixas. Que decisões são estas? As mulheres que denunciaram situações de violência estão a ser acompanhadas ou continuam vulneráveis aos tiranos com quem vivem ou de quem se separaram, sem no entanto terem a garantia de um afastamento definitivo? Todos nós sabemos as respostas. E isso gela-nos por dentro. Há, pois, que exigir mais ação do poder político. Precisamos de apoios céleres para as vítimas e de enquadramentos penais firmes para os agressores. Porque há uma tragédia diante de nós que se adensa de dia para dia.
Há ainda outro elemento que tem de ser rapidamente ponderado: as crianças que vivem em ambientes de violência doméstica. Ditaria o bom senso que qualquer menor que assista a esses episódios deveria ser considerado vítima e, por isso, afastado imediatamente do progenitor que protagoniza tais agressões. Não é isso que acontece. E lá fica a criança encolhida nos cantos da casa a ouvir palavras indecorosas vociferadas entre os seus pais e, muitas vezes, a assistir a musculadas agressões físicas. Que memórias guardará da sua infância? Que identidade estará a construir, quando aqueles que deveriam ser modelos de crescimento para si assumem comportamentos criminosos?
Em caso de separação efetiva do casal, o pesadelo pode prolongar-se por muito tempo, porque há um poder parental assegurado ao agressor, mesmo quando o risco é elevado... Não deveria ser assim.
Na minha opinião, um autor de violência doméstica não tem condições para assumir a educação dos filhos, mesmo que faça isso apenas num ou outro dia da semana. Por várias razões: porque espezinhou a sua vítima diante do respetivo filho; porque quem comete um crime sobre outra pessoa nunca poderá ser com ela parte de um processo de educação conjunta; e porque, com o seu comportamento, não atingiu apenas a pessoa que violentou. Também envolveu aqueles que a isso assistiram. No caso de menores, a vulnerabilidade cresce ainda mais, porque as vítimas são completamente indefesas. Embora tudo isto se apresente como demasiado óbvio, a verdade é que pouco se fez para proteger quem mais precisa. Perante tão colossal inércia, os crimes de violência doméstica vão acumulando mortes e somando numerosas vítimas que guardam em silêncio um sofrimento para a vida toda.
*Professora Associada com Agregação da Universidade do Minho