O lançamento para esta década de dois grandes programas de políticas públicas - o programa de recuperação e resiliência (PRR 2026) e o PT 2030 - levanta uma questão da maior relevância no que diz respeito à efetividade da administração territorial, em especial, o modo como se processa a multiescalaridade e realiza a respetiva governação multiníveis. Aliás, é o próprio relatório da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR publicado no passado dia 22 de fevereiro que o diz, quando se referem os projetos que em 2023 precisarão do necessário acompanhamento (21 em 69), que suscitam muita preocupação (13 em 69) e que se encontram em situação crítica (2 em 69), de tal modo que possamos passar de uma taxa de execução de 17% em 2022 para 32% em 2023.
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Sabemos, também, que o espaço-território foi, nas últimas décadas, sendo sucessivamente recortado em áreas de geometria variável como resposta a exigências de índole muito diversa. Desde logo, as exigências corporativas com origem nos lobbies empresariais, autárquicos e partidários, na academia e ordens profissionais, nos normativos europeus e no espírito corporativo próprio da administração pública. Em segundo lugar, como espelho de diferentes figuras de programação e planeamento do território, por exemplo, as áreas classificadas de paisagem, as unidades territoriais dos programas regionais de ordenamento, os planos diretores municipais, os programas de desenvolvimento de base local (DLBC) dos grupos de ação local, as zonas de intervenção florestal e as áreas integradas de gestão paisagística e, agora, também, as chamadas agendas mobilizadoras e os consórcios empresariais do PRR cuja delimitação específica não coincide com o território dos núcleos empresariais regionais, ou, ainda, a transferência recente de competências da administração central para os municípios, as comunidades intermunicipais (CIM) e as comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR), cuja compatibilização e coordenação ainda precisa de ser testada e validada. Finalmente, em terceiro lugar, a digitalização e a automatização de processos e procedimentos técnico-burocráticos introduziram novas discriminações de acesso e funcionamento em matéria de concursos, candidaturas, contratações, pareceres, validações, pagamentos, controlos, auditorias, assessorias, que são um verdadeiro campo de batalha burocrático-administrativo.
Estes sucessivos recortes do espaço-território e a inércia geral deste sistema político-administrativo verticalizado vão minando a pouco e pouco o capital social da sociedade portuguesa e a sua capacitação técnica para a ação coletiva em várias plataformas colaborativas inovadoras. Assim, a grande questão que se levanta para esta década é, antes de mais, a de saber se vamos aproveitar esta oportunidade para realizar uma reforma profunda da administração pública aos seus diversos níveis ou se, com receio desse exercício prejudicar a implementação dos vários programas, vamos jogar pelo seguro e, dessa forma, procurar minimizar os novos custos de contexto, sobretudo do PRR, e não cometer erros grosseiros de gestão, monitorização e desempenho. De resto, a transferência recente de atribuições e competências da administração central para as administrações local, sub-regional e regional, apesar de ir na boa direção, não nos diz nada acerca da especialização inteligente do sistema de política regional que deve enquadrar a territorialização das várias administrações públicas. A juridificação do processo de regionalização em curso não parece suficiente e, como já se percebeu, esta navegação à vista deixa-nos à mercê dos humores e reações corporativos de ocasião.
Aqui chegados, uma primeira ilação parece evidente. Esta abordagem mais defensiva dos grandes programas para a década e os volumosos meios financeiros postos à sua disposição favorece, em primeira instância, os interesses e lobbies já instalados que conhecem há muito as lógicas corporativas da administração-silo vertical e o modo como a pressão do tempo joga a seu favor. Há, ainda, uma segunda ilação que parece, também, evidente. Dada a natureza abrangente e transversal das três dimensões estruturantes do PRR - resiliência, transição climática e transição digital - parece não haver dúvidas de que uma maior e melhor territorialização das políticas públicas depende em linha direta de uma mesoeconomia mais robusta e de uma governação multiníveis mais eficaz e eficiente que só é possível com uma regionalização político-administrativa mais autónoma e com mais e melhor ação executiva ao nível regional. Que ainda não sabemos quando estará operacional e em que condições.
Dito isto, se no final da década estas três dimensões estruturantes do programa de recuperação e resiliência, em conjunto com o PT 2030, não tiverem servido para instalar uma administração do território mais estruturada e uma inteligência coletiva regional mais consistente teremos perdido a derradeira oportunidade de modernizar o Estado-administração e criado um verdadeiro sistema de política regional para o futuro. Neste momento está em curso uma transferência de atribuições e competências da
administração central do Estado para as administrações local, sub-regional e regional e até março de 2024 estará concluído o processo de reforma político-administrativo das CCDR, o seu estatuto e estrutura orgânica. Mas as minhas dúvidas permanecem. O nervosismo que se observa nas cúpulas da administração pública com sucessivas demissões e o mau estar em quase todas as carreiras da função pública com greves recorrentes não auguram nada de bom. Receio bem que a cronopolítica tome conta da ocorrência e que a pressão de executar despesa pública dentro dos critérios, das métricas e dos prazos estabelecidos pela Comissão Europeia acabe por retirar discernimento e clarividência à maioria dos atores para prosseguir e alcançar os principais objetivos de reforma socio-estrutural para a década e que eu aqui quero que fiquem devidamente sublinhados porque considero que não estão suficientemente explicitados:
- Qual é a estrutura de PME que queremos no final da década e como pode a recapitalização empresarial (em estado crítico segundo o relatório já citado) modernizar e promover esse objetivo?
- Qual é a arquitetura político-institucional que queremos em matéria de administração do território de modo a promover uma verdadeira territorialização dos programas de políticas públicas e uma economia regional mais musculada e menos assimétrica e que seja capaz de impedir os efeitos difusos e dispersivos de tantas medidas de política?
- Qual é a articulação orgânica no plano regional que queremos promover entre o PRR e o PT 2030 de modo a termos um sistema operativo eficaz, eficiente e transparente e que não seja uma vítima da governação algorítmica da gestão dos fundos europeus?
- Qual é a estrutura de qualificações socioprofissionais que queremos promover até 2030 de modo a favorecer a reorganização e recapitalização empresariais e a sua transformação digital?
- Qual é o papel reservado às estruturas associativas, setoriais e regionais (núcleos empresariais regionais), no sistema de política regional?
- Como é que todas estas reformas vão convergir e impactar positivamente as agendas mobilizadoras, os consórcios empresariais e as novas cadeias de valor que desejamos que estejam no terreno até 2030?
Estamos em março de 2023 e em qualquer momento a geopolítica europeia pode pregar-nos uma partida. Dada a conjuntura de guerra e inflação (e juros altos) não me
surpreenderia que houvesse, a curto prazo, uma reprogramação e recalendarização do PRR. Seja como for, não podemos estar já a antecipar essa eventualidade para justificar a navegação à vista de um sistema político-administrativo que se limita a correr atrás de metas e marcos, prazos e taxas de execução de despesa. Temos aqui, mais uma vez, um problema clássico de comunicação entre o ator e o sistema. Se o sistema de planeamento e administração não promover explicitamente essa comunicação multiníveis, os atores não darão as respostas mais satisfatórias e não teremos uma administração do território digna desse nome. Em vez disso, teremos um ruído de fundo constante e veremos os problemas serem aspirados para cima para serem supostamente resolvidos nas cúpulas da administração e nas suas diversas instâncias de poder, sejam comissões interministeriais, estruturas de missão ou autoridades de gestão.
Nota Final
O pós-estruturalismo ainda não chegou às políticas do território que continuam perfeitamente centralizadas e verticalizadas e a responder ao modelo-silo convencional de administração pública. Entretanto, as redes descentralizadas e distribuídas da sociedade em rede fazem o seu caminho e, a breve prazo, teremos as plataformas e os atores-rede como as duas faces principais da revolução digital, as primeiras como dispositivo de conexão das comunidades online, as segundas como organização material das comunidades offline correspondentes. É uma pena que, neste contexto, o sistema de política regional não seja um exemplo de especialização inteligente, um exemplo de experiência interativa entre o dispositivo plataforma e o dispositivo organização e uma comunidade de autogoverno e curadoria territorial ao serviço de um sistema de política regional mais autodeterminado. Oxalá eu esteja enganado, a esperança política pode ser surpreendente.
*Professor Catedrático da Universidade do Algarve