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Não tenho nada contra os escritores morrerem. É uma oportunidade como outra qualquer para começar a lê-los. Também não fico ressentido por ganharem o Nobel. Muitas vezes, antes do prémio, estavam longe das minhas estantes porque não os conhecia. Mas a morte e o Nobel, em certas cabeças, são fatalidades estranhas.
Para alguns snobs literários, que não percebem nada de astrobiologia, só os escritores que habitam a “Goldilocks zone” merecem leitura. Para ser legível pelas pessoas de bem, um escritor deve habitar uma zona do espaço literário perfeitamente equilibrada com as sensibilidades cujo nariz (vê-se à distância) só descansa quando empinado.
É uma zona caritativa: o escritor deve ser suficientemente brilhante, mas não reconhecido como tal; deve ter um nome estrangeiro complicado de pronunciar; pode ser traduzido, mas convém que quase todos os exemplares em circulação estejam escondidos lá em casa; se não se arranjar por fora, pode ser português, mas tem de ser proscrito, para substituir em estranheza o pecado de ter nascido por cá; pode ter fama, mas desgraçadamente não pode ter sucesso (ele que não pense ir à tevê); de preferência, é um eremita cuja antipatia é um gesto artístico que o leva, claro, a não se misturar com as vulgaridades; sobretudo, não pode cair na baixeza de ter conta bancária, uma editora com pendor comercial e meia-dúzia de prémios.
Digo que os snobs gostam de escritores nesta “Goldilocks zone” porque deste modo exercem a caridade. Para esses desconfiados das ribaltas, lerem um escritor óptimo que mais ninguém conhece é como dispensar-lhe uma esmola. Fica melhor a quem dá do que a quem recebe.
Em todo o caso, convém que o escritor nunca saia da zona caritativa. Há que manter curta a trela. Acontece que por vezes os escritores rebelam-se das maneiras mais estranhas. Uns morrem. Outros ganham o Nobel.
O efeito é quase o mesmo. De um dia para o outro, gingam para fora do domínio desses pequenos leitores - e ei-los bem tonificados. Os seus livros em todas as livrarias, o seu nome em todas as bocas. Para alguns, tornaram-se sopa azeda. Coitado, dizem eles, ainda ontem sabia lindamente - não temos culpa de ter azedado.
A repulsa ao escritor recém-morto, onde incluo o escritor premiado (essa pequena morte...), contrasta com a necrofilia que os mesmos leitores costumam ter. Muitos só lêem quem morreu há pelo menos cinquenta anos, não vá a carne fresca e demasiado contemporânea conspurcar-lhes a dieta.
Quando um escritor morrer ou ganhar o Nobel, corra a uma livraria. É lá que se faz o primeiro obituário. Encontrará gente inocente como eu, que até então não conhecia ou ainda não tinha lido, a comprar os títulos principais. E, opondo-se, encontrará outra gente a comentar entredentes: “pudera, agora que morreu...”
o autor escreve segundo a antiga ortografia