A lei de limitação dos mandatos autárquicos é o exemplo da mais refinada arte da hipocrisia na política: foi escrita para suscitar dúvidas a quem a redigiu apesar das certezas de quem a mandou redigir. Os partidos de vocação governativa são assim: pensam mais neles próprios do que propriamente no que seria melhor para todos, os partidos, cidadãos, enfim, para o regime democrático.
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Só para nos situarmos, recordo que esta lei de que agora tanto se fala - mesmo depois de a Comissão Nacional de Eleições ter declarado que ela se aplica ao território e não à função - foi inventada pelo PS de José Sócrates, então primeiro-ministro, e pelo PSD de Luís Marques Mendes, que procurava ganhar o partido a pulso de moralidade. Tanta ou tão pouca que os autarcas foram servidos em bandeja para gáudio do povo, enquanto o famoso pacto para a justiça se evaporava em tricas palacianas que encobriram o verdadeiro obstáculo: poderosíssimos lóbis instalados nos próprios partidos.
Pouco importou que, todas as contas feitas - incluindo as do persistente Tribunal de Contas - soubéssemos que os negócios de privados feitos à conta do Estado e intermediados pelo poder político central fossem incomparavelmente os maiores e os mais graves da nebulosa. O importante era dar um exemplo ao povo e os partidos do centro desenharam-no com tamanho cuidado quanto a futuros efeitos eleitorais perversos que o texto da lei chamou a si tanta hipocrisia que um dos seus redatores, o então deputado Paulo Rangel, a lê com um espírito em que a dita se revela totalmente infiel porquanto outros deputados, também eles viajantes nesse barco legislativo, garantem ter a dita um outro e diverso espírito.
Alguém se atreveria a atravessar um rio repleto de crocodilos numa embarcação destas?
Na verdade, os cidadãos podem desconfiar quando partidos de vocação governativa lhes propõem a moralização da vida pública, porque eles próprios têm sido incapazes de a promover no seu interior. Já sabíamos aquilo que um dirigente socialista com a responsabilidade de Francisco Assis nos veio dizer esta semana num debate televisivo: que há sindicatos de voto nos partidos e esse é um grave problema para a democracia. E a pergunta é: então por que não se moralizam os partidos?!
Antecipo as respostas: isso só se faz com muita luta, muita responsabilidade, muita consciência cívica e muita perceção de que o Mundo mudou muito e carece de novos homens. Porventura até voltará a valer o velho paradigma comunista do homem novo.
Pois seja. Mas então, parafraseando Seguro, qual foi a pressa?!A pressa de limitar os mandatos dos autarcas, precisamente os políticos mais escrutinados por governarem em regime pluripartidário.