Quando a culpa insiste em não sair do corpo das mulheres
O modo como a sociedade - e, muitas vezes, o próprio sistema de justiça - encara os crimes de violação continua a revelar um problema estrutural e persistente: a expectativa de que seja sempre a mulher a provar que resistiu "o suficiente". A narrativa é conhecida - e profundamente cansativa. À vítima exige-se que demonstre que gritou, que fugiu, que se debateu, que lutou como se cada gesto seu tivesse de ser transformado em evidência incontestável. E, mesmo perante violência evidente, ressurgem os argumentos já familiares: a sugestão de que, pela forma como estava vestida, "se pôs a jeito"; a ideia de que, por estar embriagada, "não se protegeu"; a insinuação de que a sua vulnerabilidade é, afinal, uma corresponsabilidade.
É uma construção perversa porque desloca o foco do essencial: em vez de se analisar o comportamento de quem viola, escrutina-se o comportamento de quem foi violada. O centro da avaliação deixa de ser o ato - violento, invasivo, desumano - e passa a ser a conduta da vítima perante ele. Não só desafia a razão, como perpetua a ideia de que o ónus da autoproteção pertence à mulher. Se não gritou, é porque não resistiu. Se resistiu "pouco", é porque não era assim tão grave. Se não fugiu, é porque talvez tivesse consentido. Se se vestiu "de forma provocatória", procurou atenção. Se bebeu demais, colocou-se em risco - como se a liberdade de beber ou de vestir anulasse o direito básico à integridade sexual.
Este raciocínio não é jurídico; é cultural. É herdeiro de séculos de moralidade patriarcal que ensinou as mulheres a comportarem-se "bem" para não serem culpadas do que lhes é feito. Quando estas ideias se infiltram em práticas sociais ou decisões institucionais, exigem às mulheres uma performance de pureza, prudência e heroísmo para serem reconhecidas como vítimas legítimas. Simultaneamente, mantêm intacta a ficção de que os homens são naturalmente menos responsáveis - ou menos atentos - às fronteiras do consentimento.
É precisamente aqui que Portugal precisa de alterar o seu paradigma jurídico. Países como a Bélgica, Croácia, Chipre, Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Grécia, Irlanda, Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Polónia, Eslovénia, Reino Unido, Suécia e Suíça definem o crime de violação com base na ausência de consentimento. Esta abordagem alinha-se com a Convenção de Istambul e reflete uma tendência legislativa recente em vários países, especialmente na Europa. Também a nossa vizinha Espanha, com a reforma de 2022, já adotou um modelo assente no princípio fundamental de que sem consentimento, é violação - "Ley del solo sí es sí" / "Only yes means yes". Trata-se de um avanço civilizacional claro: a centralidade deixa de estar na prova de violência, ameaça grave ou constrangimento e passa para a inexistência de consentimento livre e inequívoco. Estes ordenamentos jurídicos compreenderam algo essencial: o silêncio, a paralisia, o medo ou a incapacidade de reação não são ambiguidades; são formas de ausência de consentimento.
Porque a violação não ocorre em razão do comprimento da saia ou da profundidade do decote que a mulher use. A violação não sucede porque alguém bebeu demais. A violação acontece porque alguém decidiu violar. O único comportamento juridicamente e eticamente relevante é o do agressor. Foi ele quem atuou sem consentimento. Foi ele quem se impôs perante a vítima. Foi ele quem avançou apesar do medo, da imobilidade ou do silêncio daquela. E estas respostas - silêncio, bloqueio, imobilidade - estão amplamente estudadas como reações involuntárias ao trauma, não como sinais de aceitação.
Persistir em avaliar a vítima pela intensidade da sua resistência, pelo comprimento da sua saia, do tamanho do seu decote ou pelo álcool que ingeriu é ignorar a realidade psicológica da violência sexual e penalizar quem já foi penalizada no corpo e na vida. É também uma forma de desresponsabilização masculina: se a mulher não resistiu "bem", não se vestiu "bem", não se comportou "bem", então o homem não compreendeu "bem".
Uma infantilização perigosa, que assume que os homens não sabem interpretar limites, que não ouvem o "não", que só entendem a força física - o que, além de falso, afeta negativamente a sua credibilidade enquanto sujeitos morais e jurídicos. O que se exige, portanto, não é mais resistência das mulheres. É mais responsabilidade dos homens. E é também a coragem institucional de reformar o direito penal português para que a violação deixe de depender da prova de violência / constrangimento / ameaça e passe a assentar, como já acontece em várias democracias, na prova da falta consentimento. Porque só assim deixaremos de perpetuar um sistema onde a culpa, mesmo quando inexistente, insiste em colar-se ao corpo feminino.
A justiça - no seu sentido mais amplo - não pode ser o lugar onde se repete simbolicamente a violência. Deve ser o lugar onde ela se nomeia, se condena e se transforma. Para isso, é preciso mudar o foco: deixar de perguntar "o que fez (ou não fez) a vítima?" e começar, finalmente, a perguntar "o que fez o agressor?". Só assim deixaremos de perpetuar a velha história que tantas mulheres conhecem de cor: a de que, mesmo quando são violentadas, ainda têm de se defender - do agressor, mas também do julgamento.

