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Considerou William Shakespeare, no início de um monólogo célebre, que “o Mundo inteiro é um palco/e todos os homens e mulheres são meros atores”. Quinhentos anos volvidos, o cinema tomou conta do espaço arquetípico onde se encenam as grandezas e misérias da condição humana, e o dinamarquês Lars von Trier é talvez um dos seus melhores artífices. Filmes como “Dogville” e “Dancer in the dark” constituem hoje representações exemplares, quase sofoclianas, da lição segundo a qual todos os homens e mulheres são ruins - desde que tenham ocasião para isso e possam exercer algum tipo de violência sobre quem está fragilizado (e pouco consciente dos seus direitos). Quanto mais envelheço, mais me convenço, aliás, da validade deste axioma.
A consciência da intrínseca maldade humana está, de resto, na origem da construção jurídico-filosófica que consagrou o Estado de direito e um conjunto de mecanismos de controlo das instituições que o compõem. Nas democracias mais avançadas, existem mesmo sistemas de duplo controlo destinados a garantir aos cidadãos que podem confiar naqueles que em seu nome exercem algum tipo de poder. Mas Portugal está ainda muito longe de beneficiar de um regime político deste tipo e não é raro que tenhamos a sensação de que várias instituições funcionam sem qualquer verificação efetiva.
Este não é, bem entendido, um pecado exclusivamente português. Mas, se as instituições do Estado de direito e os seus titulares continuarem a assobiar para o lado de cada vez que os atropelos acontecem, é muito provável que estejamos condenados a regressar aos mais negros períodos da nossa História e à situação civilizacional em que, no dizer de Plauto, “o homem é lobo do homem”. Talvez valha a pena, por isso, recordar (parafraseando) aquilo que o pastor luterano alemão Martin Niemöller escreveu há 80 anos: primeiro eles vieram pelos ciganos, e eu fiquei calado - porque não sou cigano. Então, vieram buscar os negros, os paquistaneses e os brasileiros, e eu fiquei calado - porque não sou negro, paquistanês ou brasileiro. Quando eles nos vierem buscar, já não haverá quem nos defenda.