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Quando nos contam histórias bem contadas, há um momento que é um hausto que é um encontro. Pode durar a conversa inteira, assim de seguida e cara a cara, pode ser depois, quando percebemos a dimensão do que nos contaram.
Mas as ocasiões em que nos expõem a vida e em que ouvimos realmente - ouvir de ver para dentro - são deslumbres de empatia. Não sei dizer de outra maneira, nem tenho de dizer de outra maneira: assim, deslumbres de empatia. E compaixão e entusiasmo e tristeza e o que mais encontramos nas histórias dos outros.
Ultimamente, tenho pensado nisto porque fui em busca de histórias para um programa de rádio. O que tenho ouvido deslumbra-me, alegra-me e entristece-me. Sinto que as pessoas se abrem com uma simplicidade delicada que é coisa do fundo dos tempos, coisa que sempre nos acompanhou e estará sempre connosco. Contam-me as histórias das suas vidas para que o outro as viva pela primeira vez, só de ouvir contar. O outro sou eu.
Ouvi enlevado a história do Henrique Manuel Procópio, um pescador de Sesimbra que é mais senhor do mar do que homem embarcado. Nunca naufragou, mas viu naufragar e hoje trabalha no Instituto de Socorros a Náufragos. Falou-me da infância em bando de crianças por Sesimbra e da primeira vez em que se meteu num bote às escondidas e foi lançar a aparelhagem de pesca. E contou-me da última vez em que viu a embarcação “Menino de Deus”, que naufragou daí a umas horas, levando consigo vinte dos vinte e um homens, quase todos seus conhecidos.
E disse-me que tinha as mãos duras de mar, gastas pelo sal. Mostrou-me as mãos, melhor, eu tive de as ver: eram iguais às minhas. Todos temos as mãos iguais, passem elas pelo mar, pela carpintaria, pelo teclado ou pela enxada. Mas ele insistia que as mãos eram do mar e eu não o contrariei.
Ouvi enlevado a história da Fernanda Marques, que trabalhou a vida inteira na gráfica dos Livros do Brasil para sustentar dois filhos e ajudar um marido que, muito novo, ficou demasiado doente para trabalhar. Sem nunca ter saído de Lisboa, excepto numa excursão para Madrid, a Fernanda viajou com o marido para o outro lado do mundo, onde esperava curá-lo, mas afinal chegou ao outro lado da esperança. E tudo me contou como se eu merecesse ouvir tamanha força, coragem e fé.
Ouço e tento que a minha escrita ajude a contar estas histórias, uma vez por mês no “Cinco à Quinta”, da Antena 1. Não é publicidade enganosa. Se acharem que é, o culpado sou eu.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)