Corpo do artigo
Em cada eleição legislativa, cada um de nós vota para escolher uma determinada configuração da Assembleia da República, mesmo sabendo que um deputado vale aquilo que o respetivo partido quiser. E isso em nada dignifica o trabalho parlamentar. Que se inicia hoje com a votação do presidente do hemiciclo, um ato que se constitui como um teste à coesão interna do PS e que mostrará bem como funcionam os grupos parlamentares. Numa lógica de arregimentação.
Sendo a segunda figura do Estado, o presidente da Assembleia da República não tem tido grande relevância no espaço público, apesar de presidir à casa que representa a democracia. É paradoxal. Poder-se-á fazer assentar as razões disso no perfil discreto e pouco interventivo daqueles sobre quem tem recaído essa escolha. Será uma variável a ponderar. Mas há também que ter em conta o facto de o poder executivo, de um lado, e o poder partidário, do outro, exercerem um movimento de permanente constrangimento sobre a Assembleia da República. Que consegue ser eficaz, porque quem preside a este órgão e quem lidera as diferentes bancadas vão permitindo essas invasões que, muitas vezes, deveriam constituir-se como linhas vermelhas energicamente assinaladas. Ora, isso nunca tem sido feito. E não deveria ser assim.
Hoje elege-se mais um presidente da AR. Normalmente a eleição é perspetivada como uma luta entre partidos. Mais uma vez, as lógicas partidárias esmagam a importância da figura que se escolhe. Do lado do PS, emergiu Ferro Rodrigues como o candidato mais forte. O próprio confirmou a sua vontade em ocupar o cargo. Nos bastidores, falou-se também de Carlos César como outra hipótese. E todos sabem como a multiplicação de candidaturas oriundas da mesma família partidária enfraquece quem vence um escrutínio eleitoral... Segundo as previsões, a eleição de um socialista não parece difícil. Se o PS votar unanimemente na mesma pessoa. Se o BE alinhar na mesma tática. Se o PCP adotar o mesmo candidato. Se o PEV não divergir... Há muitas condicionantes em jogo e a mais perigosa joga-se na bancada do Partido Socialista. Porque estão aí aqueles que acreditam convictamente em António Costa; aqueles que apenas o toleram, mas não tresmalham; e aqueles que continuam fieis a António José Seguro, iniciando hoje uma oposição subterrânea ao atual secretário-geral do PS num sítio aparentemente favorável a todas as traições. Ontem, Costa procurou fazer perceber a todos que a hora não está para convicções pessoais. À esquerda, espera-se o mesmo alinhamento eleitoral. À direita, muda-se apenas o alvo eleitoral, mas as lógicas permanecem.
À eleição da segunda figura da hierarquia do Estado, seguir-se-á a escolha dos líderes parlamentares e todos sabem que essas opções estarão sempre alinhadas com as direções dos respetivos partidos. Para que as orientações fluam com rapidez e sem entropias a fim de que os deputados representem aquilo que os partidos deles esperam. Aí está um sinal de uma colossal debilidade da nossa democracia que tem vindo a acentuar-se nos últimos tempos, o que contribui para que o lugar de deputado não seja disputado por quem tem um reconhecido mérito e constrói a sua carreira bem longe dos partidos.
Quem se senta atualmente na AR tem de estar disposto a uma disciplina partidária que pode colidir com as suas mais profundas convicções e disponível para aplaudir decisões em relação às quais poderá ter sérias reservas. É isso que se espera de um deputado. E esta legislatura será particularmente exigente a esse nível, não havendo condescendência para os tresmalhados.
Hoje inaugura-se mais um ciclo, votando-se um presidente da AR, sem haver muita tolerância para quem não seguir aquilo que as direções do partido esperam. Será um tipo de votação com mais réplicas nos próximos tempos. Talvez fosse adequado discutir aqui se este modo de votar não suspende a democracia, mas quem normalmente se interessa por este tipo de debate não estará muito sensível a estes estados de alma... É pena.