Quarta-feira há lampreia em casa do senhor ministro
Parece que ontem houve eleições europeias. Pronto, pronto, já passou. O importante, agora, é perceber de que maneira é que a secretaria-geral do Ministério da Saúde vai passar a acondicionar os queijos e as galinhas que, pelos vistos, os médicos vão ser obrigados a enviar, no final da consulta. Nem é tanto quem vai custear o envio, o que me preocupa; é mais as coisas estragarem-se se não forem consumidas e, a não poder ser pelos próprios, que as coma o senhor ministro.
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Como exerço num hospital que serve um meio rural, sou frequentemente corrompido com comida. Por isso me desassossega o estado em que vai chegar a Lisboa, a meia dúzia de ovos de galinha pica-no-chão com que uma das minhas doentes insiste em me continuar a corromper, quatro anos após a cirurgia. Tal como me inquieta saber como é que o senhor ministro pretende que lhe passe a enviar as galinhas, se vivas ou já depenadas, as moelas e o sangue à parte para fazer a cabidela.
Confesso, porém, que a iguaria com que mais gosto de ser corrompido é a fogaça de Santa Maria da Feira. E o pão-de-ló de Ovar. É habitual partilhá-los na sala dos enfermeiros, para juntos olvidarmos o respeito que nos tem o ministro - pobre e mal-agradecido - e, corrompidos até ao piloro, ludibriarmos a fadiga depois de um dia de trabalho. É que, sabe, senhor ministro, ao contrário de si, os doentes gostam de agradecer a quem a eles se dedica, a quem todos os dias se esmifra e, inteligentes como são há muito que se aperceberam de que a Saúde é menos subornável do que a classe política. E, com despacho ou sem ele, vão continuar a oferecer canetas com o nome de quem os salvou, para que o senhor possa erigir um Museu ao Totalitarismo, exibindo (por ordem alfabética) já não os dentes ou o cabelo dos profissionais de Saúde, mas essas canetas valiosíssimas, de valor comercial risível. Já agora, adornando o Museu com as centenas de ramos de flores, diariamente oferecidas, lado a lado com as batatas, as couves e o chouriço que decerto transformarão o Ministério se não num pomar biológico ou num quadro de Arcimboldo, ao menos num bazar gourmet. Ou numa loja de chineses.
Já o que não me preocupa nada é o ponto principal do despacho que se tentou ocultar com o fait divers das ofertas: o regresso ao lápis azul, à insuportável lei da rolha com a qual se pretende coarctar a liberdade de expressão aos clínicos, de modo a que estes não possam denunciar os problemas que todos os dias enfrentam no SNS. O que o senhor ministro pretende é dispor de um instrumento legal para amordaçar os médicos, de modo a que não sejam reveladas as consequências dos cortes, e o seu reflexo nefasto na Saúde.
Não sei se o senhor ministro já deu por isso mas a Saúde é um bocadinho diferente da Direcção-Geral de Impostos: os doentes não apreciam ser tratados como algarismos. Além de que, muito antes do despacho que pretende fazer aprovar, já os médicos haviam jurado agir em benefício dos doentes "nunca para prejuízo deles ou com malévolos propósitos". Ora, como muito bem notou o bastonário dos Médicos, o decreto visa "defender mais a imagem do Governo do que os interesses dos doentes" tendo, portanto, um malévolo propósito. Não contem, por isso, com o silêncio.
Quanto ao mais, na terça-feira irei rever uma doente da Afurada, a quem há tempos fiz uma reconstrução mamária; o marido é pescador. É possível que tragam lampreia. Se assim for, eu aviso, para que o senhor ministro possa dizer para casa que quarta-feira há petisco. Não se esqueça de a marinar em alho, loureiro e vinho tinto. E, já agora, mande de volta um pedacinho para cima porque é tanta a falta de tempo entre consulta e consulta que muitos de nós já não estranham almoçar da marmita.
Ou, senão, faça melhor: não mande mais nada daí, que lhe saiba bem a lampreia mas dê o exemplo, e demita-se!
joaoluisguimaraes@mail.telepac.pt