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É talvez um capricho - mas não pedem às vezes as grávidas, com a maior das lógicas, que lhes dêem a comer a cal das paredes? -, só que certas manhãs estou no tribunal a ouvir um caso e dá-me o apetite de regressar a outro, de o provar mais uma vez. Não devia ser assim, porque casos de bêbedos ao volante são histórias tristes, muitas vezes trágicas (quando matam inocentes), e noutras alturas mesquinhas, irresistivelmente patetas.
Eu estava a ver Lisandro de costas. A malinha a tiracolo escandalosamente, escarlatamente Gucci, umas calças de montra da Avenida da Liberdade, uns ténis que voaram desde Singapura ou mais além, a camisola de luxo do Real Madrid num preto de buraco negro debruado a ouro, os aros dos óculos faiscantes como o Sol, o cabelo de seara ceifada em Agosto, um figurino que, somado em euros, batia certo com a profissão que apresentou.
- Sou de engenharia civil.
- Ah, o senhor é engenheiro civil?, tentou o juiz.
- Sou, mas agora estou na obra.
- Ah... Operário?, corrigiu o juiz, depois de um silêncio.
- Ponho gesso, essas coisas.
- Ah, é estucador.
- É, estucador é como falam.
A falar é que o Mundo avança. Há meses, Lisandro, brasileiro há seis anos em Portugal, foi apanhado a conduzir com 1,80 gramas de álcool por litro de sangue. Tinha uma explicação cavalheiresca:
- Estava num jantar, numa festa com amigos. Bebi um pouco de gin, que me lembre é isso.
Outra coisa de que se lembra é que teve azar com outro:
- Tinha havido um acidente com o carro da frente. Não vi que o policial me mandava parar, passei reto e ele me abordou.
- E porque é que foi conduzir nesse estado?
Porquê? Porque Lisandro é um cavalheiro.
- É que uma menina é que estava dirigindo, era o carro de um amigo, mas estava muito alcoolizada. Como ela estava ruim, eu decidi conduzir o carro de Lisboa até ao Estoriu.
Lisandro tem mais coisas a adensarem-lhe a figura:
- É casado?
- Sim, tenho mulher.
- Ela trabalha?
- Trabalha, ela importa biquínis.
- Ahhh... Pronto-a-vestir, vamos lá, riu o juiz, diante do operário de gessos mais metrossexual que até hoje lhe apareceu pela frente e da sua importadora de biquínis.
Tem isto interesse? Nunca se sabe. De súbito, lembrei-me do pedreiro Vítor que, há anos, ia de bicicleta na 24 de Julho, espatifou-se contra um carro, bateu no condutor do carro que o tentava socorrer, foi preso, esqueceu-se de onde morava e chorou porque tinha dois cães pastores que decerto iam morrer de fome.
- É só sofrer, é só sofrer!, repetia o pedreiro Vítor. Bonito é ser lúcido. Eu nunca mais bebo.
Até que - ainda o vejo agora, como ontem - abriu os braços em Cristo e suplicou:
- Tenham pena, tenham pena da humanidade!
Bom, se falei, lá em cima, de quase saudades, vou falar agora de saudades certas, irreparáveis para a cultura e a alegria em Portugal, com a morte de José Pinho, o grande livreiro, o incansável - olhem, vou usar esta palavra feia pela primeira vez - empreendedor, realizador de ideias gigantes como a Livraria Ler Devagar, o Festival Internacional de Literatura de Óbidos, e por aí adiante e etc. e continua e não acaba. Os seus trabalhos e o seu humor andaram esta semana nos jornais, no coração dos amigos e familiares, na cabeça dos que acreditam no poder da literatura e das pessoas... acreditar na humanidade, na vida e no amor pela palavra. Em 69 anos, uma lista de obras positivas, corajosas, à beira do esplendor e da falência, que a morte tentou parar, mas não conseguiu e não o vai conseguir até pelo imparável aplauso que nasceu sexta-feira, nos últimos minutos da despedida, no cemitério do Alto de São João. Obrigado e bela vida tiveste e deste, José Pinho.
*Jornalista
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)