<p>Quem estava à espera de que o presidente da República viesse falar de segurança, enganou-se. Cavaco Silva falou de política. E falou alto, pois acusou "o partido do Governo" - sem nomear quem - de ter "ultrapassado os limites do tolerável e da decência", acusou-o de ter manipulado, de lhe ter dirigido um ultimato, tudo com o objectivo de "desviar as atenções" das questões que preocupavam os cidadãos e de o "encostar ao PSD".</p>
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Estas são as acusações. Ouvidas e lidas, fica-se sem perceber como irão presidente e primeiro-ministro recém-confirmado pelas urnas entender-se, como pode o presidente trabalhar com o líder de um partido que manipula, que passa dos limites. Felizmente, o PS foi ponderado na resposta, limitando-se a justificar ponto por ponto as acusações que lhe eram dirigidas, desmontando-as, e resistiu à tentação de manter o clima de guerra. Mas não há nada a esperar de bom nas relações S. Bento-Belém, a cooperação institucional não passa já de um conceito. De agora em diante, o Parlamento, os partidos e o Governo têm nas suas mãos a responsabilidade acrescida de garantir a estabilidade do país. Depois do discurso de ontem, Cavaco vê muito reduzida a sua capacidade de intervir na qualidade de árbitro.
As acusações avançadas não estão fundamentadas pelo discurso do presidente: o discurso é frágil e até ele mesmo manipulador, pois fala num assessor que não é o seu próprio assessor, trazendo à colação um colaborador do primeiro-ministro que, em toda a parte da história das escutas é personagem menor. Pior: o discurso, além de confuso, não é claro no essencial. Cavaco diz que ninguém fala em seu nome, a não ser o chefe da Casa Civil ou da Casa Militar, diz ter dúvidas que o seu assessor - finalmente fala no seu assessor- o tenha feito mas procedeu a alterações na sua Casa Civil. Ou seja: Fernando Lima, o assessor de Cavaco, pode nada ter feito de mal, mas mesmo assim é afastado e o presidente não achou importante vir dizer, antes, em cima da revelação do email, que tudo era uma manipulação. Misturando emails - um de enorme gravidade revelado no DN e os seus próprios, que não vinham a propósito -, prossegue na confusão. Queríamos saber de escutas, mas Cavaco diz que chamou especialistas e que ficou a saber que existem vulnerabilidades no seu computador. A sua preocupação com as escutas era esta? Alhos e bugalhos misturados num discurso que visava resolver um problema e que arranjou outro bem pior! Qualquer pessoa sabe que um computador não é cem por cento invulnerável, até o Pentágono já foi vítima de intromissões.
O discurso do presidente é desequilibrado e confuso, ambíguo, inoportuno e nada claro: as acusações são directas, mas o que queríamos ver explicado está em meias-palavras. É infantil, e por isso nos deixa a todos perplexos. Patético. Politicamente, Cavaco deu ontem um passo decisivo para encerrar a sua carreira sem direito a segundo mandato. Fá-lo da pior forma, aliás. Mas, perante um discurso de tal gravidade, seja o leitor o juiz, lendo-o nesta edição, pois publicamo-lo na íntegra, para que todos possam analisá-lo.