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Eu não sou intérprete. Fazer versões de canções alheias sempre me pareceu estranho. Se já está escrito, perde-se o sentido. Acontece que há exceções, para as vontades e para as versões. Primeiro, porque as palavras de Sérgio Godinho estão sempre próximas, ecoam nas paredes da casa mãe, estão no domínio da memória mais profunda e, talvez por isso, são familiares demais para serem estrangeiras. Segundo, porque já as tenho visitado de tempos a tempos, tocando com ele em palco ou sampleando e citando-as nas minhas próprias canções. E depois, porque a generosidade infinita do Sérgio e o seu desprendimento permitem que a versão se faça na (re)escrita (e assim ainda entusiasma mais).
“Que força é essa” é a primeira música do primeiro álbum do Sérgio, que é também o meu favorito. Canto-a tantas vezes pela casa, que o meu filho, quando um dia me ouviu desabafar de cansaço por “trabalhar o dia inteiro” completou a minha frase cantarolando “a construir as cidades para os outros”. Nesse momento, apercebi-me (entre risos) o quanto as infâncias e as gerações se cruzam pela música e fiquei com vontade de, um dia, fazer a minha versão do tema.
A ocasião chegou em janeiro, para o concerto “Conta-me uma canção” no Maria Matos, em que partilhei o palco com o Sérgio, com o desafio de trocarmos e partilharmos músicas. Mas como mexer naquela canção-monumento? O original tem tudo! Vive no equilíbrio entre a poesia e a denúncia, falando de exploração, semeando a subversão, sem nunca ser panfletário.
Rapidamente percebi que a resposta estava na perspetiva. Manteria o registo e a emoção, mas falaria das mulheres e da exploração do trabalho doméstico e reprodutivo, historicamente desvalorizado e invisibilizado. A minha versão seria no feminino e, mantendo a estrutura dos versos, preservando o corpo do refrão, perguntaria agora “que força é essa amiga?”
A canção saiu a 8 de março, o dia da luta pelos direitos das mulheres. Em fim de semana de eleições. No ano em que celebramos os 50 anos da Revolução dos Cravos. E se o 25 de Abril foi providencial para a libertação das mulheres no nosso país, permitindo enormes conquistas no que diz respeito à igualdade de género, importa também relembrar que nunca podemos dar essas conquistas como garantidas (sobretudo perante o resultado eleitoral) e que temos ainda muito a fazer para que a igualdade seja plena e para todas. (Sobretudo dentro de casa).
Esta canção, agora na rua, é a minha forma de celebrar Abril, homenagear um dos seus maiores ícones musicais (Sérgio Godinho) e de semear, como ele, a semente do inconformismo, no coração de todas as mulheres que dão o tempo e o sangue para garantir a economia do cuidado e a mão de obra do futuro.