Li o discurso da tomada de posse de Cavaco Silva mais do que uma vez. A primeira, confesso, com alguma sofreguidão, tal era o desejo de confirmar se o Parlamento tinha sido sacudido pelo tremor de terra político anunciado. Confirmei-o de alguma forma. Sobretudo porque a habilidade com que foi construída a oratória presidencial torna praticamente impossível a um vulgar cidadão da classe média não concordar com (quase) tudo.
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Podemos acusar Cavaco Silva de tacticismo político, de revanchismo, de moralismo desresponsabilizante, mas não podemos acusar o presidente da República de ter fantasiado os factos. Porque esses são indesmentíveis.
Uma segunda e terceira leituras mais atentas permitem perceber outras coisas: que a diabolização que se julga ser exclusiva do Governo não o é. Neste âmbito, não deixou de ser ridículo assistir às bancadas da Direita aplaudir o presidente quando este pugnou por uma cultura que premeie o mérito e não os tachos políticos. Aplaudiam o quê, exactamente?
Cavaco Silva tem um problema. Como qualquer político. Esse problema chama-se passado. E o passado do presidente, deste presidente, cruza-se, em grande medida, com as políticas estruturais do Governo que agora excomunga. Por isso, Cavaco protagonizou, de certa forma, um exercício público de autoflagelação. Não pode o presidente alhear-se de uma realidade que ajudou a moldar.
Mas se isto é verdade, também o é afirmar que o país merece mais do que um chefe de Estado corta-fitas, cuja única preocupação é cimentar a certeza, entre os eleitores, de que trata todos os portugueses por igual. Se ao presidente da República for coarctada a possibilidade de, por via da sua mais incisiva arma - a palavra-, agitar as águas, caminharemos para um unanimismo bacoco, de regime, em que ninguém acredita.
O presidente da República - este e os vindouros - tem de transcender a dimensão "à la rainha de Inglaterra" que lhes parece destinada. E ser mais do que um indivíduo cauteloso quando no cumprimento do mandato e surpreendentemente lúcido e crítico quando já lá não está (vide Jorge Sampaio).
Mas não nos iludamos. O murro na mesa de Cavaco Silva não mudará nada: agora, estão estes; a seguir, virão outros. Como alguém dizia por estes dias, de que serve mudar os políticos se eles continuam a imitar-se uns aos outros?
