Vi o primeiro quadro de Nadir Afonso há muitos, muitos anos no Museu Abade de Baçal em Bragança. Era um quadro isolado da coleção Cidades. Fiquei curiosíssima.
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Muitos anos depois pude conhecê-lo, encontra-lo e visitá-lo com alguma frequência.
Foi simplesmente um dos maiores privilégios da minha vida.
Nadir Afonso era um artista enorme e um pensador totalmente independente. Por razões várias a que certamente não foi estranho o seu completo alheamento da política partidária nos anos da revolução, Portugal ouviu-o mal, viu-o com pouca atenção e homenageou-o tarde e muito incompletamente.
"A Arte não é mera questão de inspiração", repetia incessantemente. "A Arte tem regras, regras geométricas e tem de as seguir". "A minha Vida", dizia, "foi a procura permanente dessas regras, geométricas e matemáticas que a natureza também segue."
Ouvi-o e li-o com enorme incapacidade para abranger o significado do que dizia e do que pensava mas sempre espantada com a sua convicção e com a humildade de quem sabe que tem de procurar até ao fim.
Era por isso que dizia de vez em quando que um determinado dos seus quadros "estava errado". E anos depois, ao revê-lo, encontrava o erro e corrigia-o, retocando-o.
Contava sempre a história de Vasarely (considerado o fundador da OP Art) com quem mantinha acesas discussões em Paris. Um dia Nadir explicava-lhe a dificuldade que estava a ter para encontrar a solução de finalização de um determinado quadro - na procura das tais regras matemáticas e geométricas. Vasarely duvidou e Nadir propôs-lhe o desafio. Ele levaria o estudo que Nadir sempre produzia primeiro e ambos tentariam encontrar a solução. Segundo Nadir, passou-se mais de um mês até que Vasarely revela ter chegado a uma conclusão. Nadir, por se turno, diz-lhe que também ele tinha conseguido. Juntaram quadro e estudo e a solução encontrada por ambos, que não mais se tinham encontrado durante esse período, foi rigorosamente a mesma. "É que as Leis, as Leis que regem a Arte são Universais"- justificava.
Lembro-me especialmente das visitas a 1 de janeiro que sempre lhe fazíamos, o calor com que nos recebia e a graça que achava quando lhe dizia que o ia deixar porque tinha de ir à Missa. Missa de Ano Novo na Capela de Santo António do Estoril onde hoje, a esta hora, repousa.
Mas as imagens mais luminosas eram as das temporadas de verão que fazia em Chaves. A sua Chaves natal onde mantinha casa e atelier. O atelier com uma varandinha virada para a rua principal a dois passos do Café Sport que conta com um seu magnífico painel.
Aí o encontrávamos, depois da sesta, sempre de bonezinho branco e sempre apoiado na sua Laurinha.
Todos o vinham ver. Corria rápida a notícia de que Mestre Nadir estava em Chaves.
Da Adega do Faustino ao Restaurante Carvalho ou à Casa Costa do Taró sempre se arranjava a melhor mesa e sempre se revia com orgulho o Mestre flaviense.
Por terras de Trás-os-Montes a sua disponibilidade era tocante. Ainda que já de idade avançada e com alguma debilidade física nunca recusava a participação numa conferência, a inauguração de uma exposição (como a de Boticas) ou simplesmente uma espécie de aula sobre os mecanismos da criação artística.
Lembro-me especialmente de uma conversa na Biblioteca de Chaves com Nadir e Siza a propósito da nova Fundação Nadir Afonso (que será inaugurada em breve). Dois seres superiores. Um, tal como disse hoje Álvaro Siza, a rejeitar a Arquitetura (a sua formação inicial) por ser livre demais para se condicionar e outro a explicar um projeto para um edifício que é pura geometria de luz.
E, no entanto, Chaves conta com alguns edifícios projetados por Nadir e terá de os valorizar. Um dos mais significativos é a Panificadora de telhados ondulados e chaminés de navio, deslocada numa rua secundária de Chaves porque será sempre avançada no tempo e no espaço.
A sua vivência sulista não lhe retirou o Norte. Embora Cascais lhe desse porventura menos trabalho não hesitou quando se tratou de escolher a terra onde a sua obra será concentrada e exposta para ensinamento e deleite de todos nós : Chaves - a terra que sempre o acompanhou na música do seu sotaque.