Os cargos públicos de topo não são bem remunerados, mas, para além (de uma ilusão) do poder que sempre criam a quem transitoriamente os ocupa, apresentam a possibilidade de, a partir deles, se construírem bastidores de geometrias muitas vezes ilícitas que abrem benefícios se não imediatos, pelo menos a médio prazo.
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Isso subverte a missão de serviço público que esses lugares exigem. E cria na opinião pública uma perceção injusta em relação àqueles que insistem em desempenhar a função com dignidade.
Não é a primeira vez que o jornalista francês Vincent Jauvert escreve sobre os subterrâneos do poder político, mas o novo livro que agora publica em França, intitulado "Os vorazes: as elites e o dinheiro na era Macron", coloca novamente no espaço público a discussão sobre a perigosa porosidade entre as elites políticas e económicas. Ainda que tivesse agitado a bandeira da transparência e do rigor na gestão dos cargos públicos como uma promessa a cumprir, Emmanuel Macron viu, neste seu primeiro mandato no Eliseu, oito ministros a abandonarem as respetivas pastas devido a questões éticas.
Baseando-se em casos muito recentes, Jauvert vem agora falar da acumulação de cargos (muitas vezes usando testas de ferro), de lóbis obscuros, de tráfico de influências, de conflitos de interesse... Depois de percorrer as várias situações denunciadas neste livro, a pergunta torna-se inevitável: haverá modos de expurgar estes abusos? Na minha opinião, a regulação institucional abrirá sempre interstícios através dos quais aqueles que querem pisar linhas vermelhas sentirão terreno mais do que suficiente para avançar.
Enquanto detentores de cargos públicos, aqueles que não encontram no seu trabalho qualquer sentido de bem comum descobrirão continuamente formas de gerir a seu favor dinheiros públicos, contratar gente próxima para os seus gabinetes e ir criando listas de contactos conforme os interesses do momento... Nenhuma estrutura que escrutine cargos públicos conseguirá supervisionar de forma intransigente quem abusa do poder que tem.
"Os vorazes" fazem um retrato daquilo que hoje se vive em França. Todavia, não é difícil fazer uma extensão de sentido para outras geografias. Por cá, a Comissão da Transparência e Estatuto dos Deputados adiou, esta semana, a votação dos critérios orientadores em matéria de ofertas e hospitalidade recebidas pelos deputados. E nós, enquanto opinião pública, perguntamo-nos porque é sempre tão difícil regular práticas que deveriam ser normais...
*Prof. Associada com Agregação da UMinho