Um relatório desenvolvido pela Fundação Portuguesa de Apoio à Vítima, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, intitulado "Portugal mais velho", propõe uma revisão do direito sucessório para garantir a possibilidade de se deserdarem descendentes diretos em casos de maus-tratos ou violência em contexto doméstico. Dever-se-ia ir mais longe e permitir que cada um decidisse a quem legar o respetivo património.
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Sou neta única e filha única. Portanto, com acesso direto a heranças. No entanto, nunca gostei desse direito automático que a lei coloca ao meu dispor. Também não concordo com a inexplicável "quota disponível", segundo a qual parte do património da pessoa que falece tem sempre de ser deixada aos seus descendentes e, quando não os haja, aos ascendentes. Tudo isto desrespeita a vontade de quem construiu um património ao longo de uma vida e depois se vê impedido de escolher a quem doar esses bens.
Aquando da morte dos meus avós, a minha mãe quis que a herdeira fosse eu e nós lá contornámos a lei, beneficiando do facto de sermos uma família reduzida e fácil de acomodar. Depois da partida do meu pai, sempre defendi que o destino de todos os bens deve ser exclusivamente gerido pela minha mãe. Em nada contribuindo para aquilo que foi construído, não devo ser parte de qualquer decisão, inclusivamente de venda ou dádiva a terceiros. Para mim, este princípio é inviolável: cada um deve decidir o destino do seu património. Em consciência, em liberdade e sem quotas fixadas por um direito sucessório que nada sabe sobre as nossas vidas.
Não será fácil mudar a lei, mas já é um primeiro passo abrir a discussão, que deveria também integrar não apenas quem maltrata e violenta os mais velhos, mas quem confortavelmente fica longe de nós e distante do nosso coração, quando mais se precisa de ajuda... Ontem à noite, o programa Linha da Frente, da RTP1, emitiu uma reportagem que intitulou "Os dias em suspenso". Lá estavam os mais velhinhos que, sem necessidades clínicas, permanecem no hospital, porque a família já não os ampara e o Estado social, o nosso, se revela incapaz de os proteger. "Também se morre de tristeza", diz uma das profissionais da saúde ouvidas pelo jornalista José António Pereira, autor desse trabalho. A frase sente-se como um murro no estômago. "A vida também são espinhos", diz uma idosa de olhos lacrimejantes que tenta disfarçar com um sorriso triste. Terão os descendentes dessa gente direito ao património que lhes resta? Para mim, a resposta é óbvia.
Prof. Associada com Agregação da UMinho