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Eu até podia considerar que os comentários online, em particular nas redes sociais, são apenas mentalidade de automóvel, em que o trânsito nos sobe à cabeça e facilmente buzinamos, insultamos e aceleramos. Ao chegar a casa, o desvario está esquecido e sanado. Mas são mais do que isso: são um espelho, uma grande tradução de nós mesmos. Aquilo que vemos de feio somos nós. E nós em estado mais puro, no sentido de despudorado, incivilizado, distante do próximo. Nós cobardes, nós sem colação.
Na sexta-feira passada, morreu um forcado de vinte e dois anos no Campo Pequeno. Corrijo: sexta-feira passada, morreu um homem de vinte e dois anos. E volto a corrigir: morreu um rapaz. Bastaria esta frase, não seria preciso acrescentar o que isso significa para a mãe, o pai, os irmãos, os amigos. Qualquer pessoa acima de besta sente nisto uma tragédia.
Ainda que a nossa cultura judaico-cristã seja baseada no perdão e na possibilidade de sermos redimidos, chegámos ao momento em que a morte de um rapaz de vinte e dois anos, de acordo com milhares de pessoas online, é apenas a paga justa de um pecado. Perdi a conta aos comentários que celebravam o acontecimento, que perguntavam pela saúde do touro, que diziam, sem qualquer vergonha, que já ia tarde.
Não se trata de um debate sobre touradas. Isso não me interessa para nada neste contexto, que é muito mais abrangente e culturalmente significativo. As reacções à morte de Manuel Maria Trindade são um exemplo claríssimo, e inquietante, de uma sociedade que se tornou agónica, um espaço público sem nuances, moralista e tantas vezes hipócrita. Já para não dizer profundamente acéfalo.
Além disso, a sinédoque é agora a pedra-de-toque do nosso convívio. Constantemente tomamos a parte pelo todo. Este caso mostra-o com clareza: aquele rapaz foi reduzido a um aspecto da sua vida - e julgado em conformidade, sem olhar a meios. Quem se vangloriou com a sua morte não concebe que um forcado possa gostar de animais, nem que ame e seja amado, não perceberá talvez que ele, mesmo depois de ter morrido, como qualquer um de nós, é intrinsecamente digno, sejam quais forem as circunstâncias, e também digno enquanto nosso irmão. Por isso, quem odeia o rapaz morto não perceberá a falsa equivalência entre o valor da vida de uma pessoa e o valor da vida de um animal, mas não vale a pena ir por aí, sob pena de pregar a quem não fala a mesma língua.
A nossa sociedade não está a mudar porque já mudou: é uma outra coisa em forma de selva. Aliás, na selva não há crueldade, duplicidade ou hipocrisia. Há apenas a selva. Chegámos antes a um sítio insalubre de ressentimentos, ódios mesquinhos e ajustes de contas. Acabou-se a salvaguarda de uma certa reserva baseada em conceitos de educação e civilização, de bom-trato na vida em comum, sobretudo a pública, que era frágil mas ainda assim determinante. E daqui não sabemos como fugir.
O autor escreve segundo a antiga ortografia