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O movimento que conquistou o poder nas eleições de 2011 nasceu no congresso do PSD, com a apresentação de um projeto radical de revisão da Constituição e essas forças políticas - tanto no Governo como mais tarde na Oposição - persistem incansavelmente na sua cruzada contra a Lei Fundamental. Há um ano, os partidos da coligação pretendiam que o Presidente não tinha poderes para nomear um Governo apoiado pela maioria absoluta dos deputados eleitos. Depois de nomeado, acusaram-no de ilegítimo! Agora, invocam novos fantasmas e demónios, e até vislumbram num Presidente que lhes parece demasiado jovial e assertivo, uma ameaça de invasão das competências próprias do Governo.
Não há motivo para tão hipócrita inquietação. O comportamento de Marcelo Rebelo de Sousa nada tem de novo ou surpreendente. Ele sempre foi assim: espontâneo, caloroso, exuberante mas sempre disponível e atento a quem com ele se cruza. Irónico e descontraído, soube combinar numa fórmula feliz a representação gloriosa do lugar conquistado com uma proximidade ingénua e cúmplice que seduz muitos cidadãos. No fundo, encarna uma versão um pouco mais popular e um pouco menos institucional das presidências abertas inauguradas por Mário Soares, há 30 anos. São questões, enfim, de estilo pessoal, traços psicológicos sobre os quais a Constituição, naturalmente, nada tem a dizer e nada diz. Por coincidência, Marcelo Rebelo de Sousa é constitucionalista, ensinou Direito Constitucional a gerações sucessivas de juristas, escreveu e pronunciou-se publicamente sobre a Lei Fundamental, foi deputado à Constituinte e por tudo isso conhece muito bem o quadro e a prática constitucional que definem os poderes do Presidente da República.
O seu desempenho do cargo, ao longo do primeiro ano do mandato presidencial, suscita tensões e alimenta inconfessáveis ressentimentos, mas não envolveu até hoje qualquer desvio à solidariedade institucional devida aos outros órgãos de soberania, nem extravasou do "poder separado" que o povo lhe confiou. Ainda que, porventura, seja tentado a levar a interpretação dos seus poderes até aos limites constitucionais, o professor de Direito sabe muito bem que o Presidente não governa e que o sucesso da "magistratura de influência" que exerce - conceito que deve direitos de autor ao Presidente Mário Soares - sempre correrá por conta do prestígio do magistrado que a exerce, para o melhor e para o pior. Nenhum membro do Governo manifestou até hoje qualquer embaraço ou perturbação devido aos pronunciamentos públicos do Presidente.
Foi Mário Soares quem impôs a preponderância parlamentar no delicado sistema de equilíbrios consagrado pelo chamado regime semipresidencial em vigor. Essa foi uma causa que empenhadamente assumiu na dura campanha eleitoral das presidenciais de 1986 que lhe deram a vitória. A natureza essencialmente parlamentar do regime prosseguiu a sua consolidação com Jorge Sampaio e até, de alguma forma, se irá reforçar com Cavaco Silva. Este, como bem nos lembramos, desistiu de demitir o Governo de Passos Coelho, em 2013, aquando do episódio da demissão irrevogável de Paulo Portas. E em 2015, após a rejeição pela Assembleia da República do programa do segundo Governo da coligação PSD/CD resignou-se a nomear António Costa como primeiro-ministro e -pese embora a sua confessada relutância - a dar posse ao Governo minoritário do Partido Socialista, suportado pela atual maioria parlamentar.
O início de um novo mandato presidencial não é ocasião oportuna nem adequada para abrir um debate constitucional sobre a conveniência da revisão dos poderes presidenciais, matéria sobre a qual me pronunciei repetidamente ao longo do segundo mandato de Cavaco Silva e à qual agora me dispenso de regressar. A eleição por sufrágio direto e universal do Presidente da República confere-lhe uma legitimidade democrática indiscutível e uma autoridade muito ampla. A interpretação e o exercício desses poderes, em conformidade com os preceitos constitucionais e a prática dos seus antecessores, é responsabilidade indeclinável do titular eleito.
* DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL