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A cidade de Bombaim, o maior centro económico e comercial da Índia, tem, no seu núcleo urbano, cerca de 13 milhões de habitantes e... 80 milhões de ratos. Uma das profissões mais desejadas na quarta maior área metropolitana do Mundo é, por isso, a de caçadores de ratos.
Sempre que é aberto um concurso público, são aos milhares os candidatos (há muitos licenciados): trabalhar para o município, a troco de 200 euros por mês, é um luxo. A tarefa, diga-se em abono da verdade, não é fácil - se não matar 30 ratos por noite, o caçador é despedido. Além disso, só é aceite quem tenha entre 18 e 30 anos, o ensino secundário completo (no mínimo) e mostre ser capaz de carregar um saco de 50 quilos. Verificadas estas condições, resta uma última prova: matar mais de 10 ratos em 15 minutos, numa sala às escuras.
Depois de alcançadas estas condições, o caçador está pronto para, seis noites por semana, sair para a rua à procura dos roedores. A técnica para os meter no saco é simples: aponta-se-lhe uma lanterna para os olhos, o rato fica atordoado e o caçador aproveita o momento para o matar à paulada. Agarra o animal com os dedos dos pés e saco com ele.
Creio que as centenas de milhares de pessoas que, anteontem, abdicaram dos prazeres que a canícula proporciona para se manifestarem por todo o país o fizeram porque, tal como os ratos de Bombaim, se sentiram, sentem e não querem continuar a sentir-se ofuscadas com a luz projetada pelas mentes brilhantes dos governantes que lhes (nos) saíram na rifa.
O leitor analise bem o problema. Em Bombaim, os caçadores treinam numa sala às escuras, batendo desenfreadamente em tudo o que mexe para chegarem aos mínimos (10 ratos em 15 minutos) que lhes garantem o emprego. Em Portugal, as luminárias que conduzem o nosso destino queimaram as pestanas, anos e anos a fio, em universidades de alto gabarito, mas fizeram-no igualmente às escuras, sem perceber que a Economia e as Finanças têm um pequeno problema: devem ser usadas com juízo e sem experimentalismos, quando o alvo final dos elaborados cálculos são as pessoas.
Quer dizer: não dá jeito que cada um de nós seja, na cabeça dos adiantados intelectuais, uma espécie de ratinho de laboratório. O resultado está à vista: o povo está farto de levar paulada - e saiu à rua para o mostrar. O que anteontem se viu nas ruas de todo o país foi a maior demonstração inorgânica de descontentamento de que há memória em Portugal. Não foi a ideologia que trouxe o povo para a rua - foi a necessidade de acabar com a apatia. Não foi o sentido corporativo ou de classe que encheu avenidas - foi a necessidade de selar um divórcio por justa causa com um Governo que perdeu o país depois de se perder a si próprio.
Este é o ponto de não retorno.