Corpo do artigo
Quem vê pela primeira vez os meus livros, que são em número bastante para fazerem uma biblioteca, pergunta invariavelmente se já os li a todos. Eu devia ter uma resposta preparada para explicar que nem todos os livros exigem leitura, pelo menos no sentido beatífico, de fio a pavio, são antes para serem vistos, usados, manipulados, lidos, relidos, estragados, dobrados, estudados - são antes para serem vividos.
Muitos são apenas lombadas de contágio para outras lombadas; outros, tenho por eles um amor parecido com o que sinto por familiares que não vejo há muito tempo. Um amor distante mas contínuo. E muitos caíram-me na biblioteca por interesse passageiro, e aí ficaram como os anéis de um tronco, que assinalam o crescimento da árvore.
Uma biblioteca é maior do que um relatório de contabilidade, está além do deve e do haver. E eu não só nunca conheci um leitor que tivesse saldado todas as suas dívidas, como observo os meus livros com a sensação de que me observo a mim mesmo, o que me deixa especialmente tranquilo. Quer dizer que sou inacabado e que terei sempre algo por descobrir.
Cada um lê como quer. Um amigo meu, escritor, instituiu um sistema aleatório de sorteio de leituras: uma app gera um número que corresponde ao livro a ser lido. A aleatoriedade impede-o de se perder num ciclo de leituras aparentadas, num longo penar dos mesmos interesses. Secretamente, desejo que o sistema o leve a um manual sobre esculturas feitas com fósforos.
Mas cada um não lê como quer, também. É que ainda há quem se sinta culpado por abandonar um livro a meio da leitura, como se o abandono fosse demérito, prova de incapacidade ou demonstração de falta de intelecto. Porém, há boas razões para abandonar um livro - e deixarmo-nos de insistências pode ser prova de maturidade.
Eis algumas.
Porque queremos reatar o livro que antes abandonámos. Porque a obra foi recomendada por um influencer como forma de atingirmos um espírito mais esclarecido. Porque já o lemos tal e qual noutro livro. Porque foi escrito por E. L. James ou autor semelhante. Porque ainda não estamos à altura do que podemos encontrar. Porque é a quarta vez que tentamos. Porque não vale a pena o sacrifício só para, tratando-se de um clássico, dizermos que o estamos a reler.
As razões são infinitas como as bibliotecas. Mas a mais perfeita - aquela que num leitor veterano se tornou em intuição à custa de muita experiência - é que abandonamos um livro porque temos vontade de o abandonar.
*o autor escreve segundo a antiga ortografia