Se pudesse pôr um subtítulo a este artigo ter-lhe-ia chamado, "o país que os noticiários escondem". Primeiro episódio: reportagem do encerramento de mais uma fábrica. Trabalhadores em vigília, para evitarem a saída de equipamento. Incidente que se repete e que diz muito sobre os valores morais de alguns patrões. Ouve--se o espanto de uma porta-voz dos trabalhadores: "Não percebemos. A fábrica tem encomendas. Ainda ontem trabalhámos todo o dia. Tem de haver dinheiro para pagar os salários". Não lhe ocorre, não tem de lhe ocorrer, que a razão para a empresa ter encomendas seja, precisamente, o não pagar salários. Como, provavelmente, não pagará aos outros fornecedores. Assim, sem custos, ou com custos muito baixos, consegue as encomendas à custa de outras empresas que, cumprindo a lei, têm encargos muito mais elevados. Distorce-se a concorrência. Quando o mercado é estreito, como hoje em dia, há outras empresas que ficam sem trabalho. E assim se espalha a doença ao resto do tecido produtivo, antes são!
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Por muito que custe a compreender, o encerramento de empresas como esta só peca por tardio. Garantir o emprego seria, neste como em casos semelhantes, irresponsável. Na economia, como na vida, a amputação pode ser condição de sobrevivência. Subsiste um problema social, de garantia de rendimento aos desempregados, para o qual o Estado deve usar os instrumentos e as políticas sociais adequadas. E, também, um problema de justiça, quiçá de Polícia, que se arrastará os anos suficientes para tornar a dita justiça uma palavra sem sentido. O que é grave. Como grave é que não se ouçam as associações empresariais condenar estas práticas patronais, que nem o desespero legitima.
A proliferação de casos como o descrito transforma o Estado, pela via do Governo, no salvador em quem todas as esperanças estão depositadas. Uma lógica muito de acordo com um segundo episódio, envolvendo as expectativas suscitadas pela construção da barragem do Alqueva. Dizia o habitante de uma aldeia vizinha, sentado ao sol, "nada mudou. Continuamos à espera". Continuamos à espera! Das especiarias da Índia, do ouro do Brasil, das remessas dos emigrantes, dos fundos estruturais, do Alqueva. E, agora, do Estado. E, sempre, dos outros. É que nós, verdadeiramente, não podemos fazer nada. Nem termos iniciativa, nem sequer guiar como seres racionais, nem estacionar pensando nos outros, nem evitar deitar lixo para o chão, nem respeitar o património nacional, nem ser solidários com os outros, nem...
Outros que, como contava mais uma reportagem, às vezes sofrem de uma doença bem simples: o desamparo da solidão. Idosos, sozinhos, que precisam de uma conversa, de estar com gente. E que, por isso, chamam o INEM, desviando-o da sua missão.
Somemos dois mais dois. O aumento da longevidade fará com que situações como estas se multipliquem. Ao mesmo tempo, aumenta o rol daqueles que recebem subsídio de desemprego ou outro apoio público. Solidariedade com solidariedade se paga. Por que não ocupar uma parte do seu tempo com um "serviço cívico" que não exige outras competências que não carinho e afecto, disponibilidade para ouvir e conversar? Pensando bem sou capaz de estar a ser ingénuo, a pedir o impossível: hoje, esses são atributos difíceis de encontrar...