Aí está, ainda mais uns dias, a Feira do Livro de Lisboa, que planta livros e autores no Parque Eduardo VII. Enquanto esperamos por leitores que queiram estragar os seus exemplares com a nossa caligrafia - a minha, medicamente péssima -, convém esclarecer uma coisa sobre a fisiologia dos escritores.
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De acordo com certa mundividência, o escritor (da espécie "Scriptor-deficit") é o único animal que não precisa de comer. Há qualquer sublimação - uns chamar-lhe-iam anomalia - que o leva a comer exclusivamente ar.
Encontra-se no "Pantagruel", basta consultar a secção para escritores: feijoada de ar à portuguesa, arzinhos ao sal no forno, coxas de ar à moda da avó, cheesecake de ar condensado, sopa de ar, e até bifinhos de ar com molho arejado. Bem confeccionado, resume-se a ar o que nos dão.
É um equívoco. Ou se acha que o escritor é o único animal sem sistema digestivo, ou sabe-se perfeitamente que precisa de alimento, mas ninguém está interessado em dar-lhe de comer.
Ambas as opções ajudam a explicar as borlas. A primeira é um mal-entendido que eu desfaço aqui e agora: nós escritores precisamos de comer. A segunda é uma vergonha que eu gostava de denunciar: nós escritores precisamos de ser pagos.
Apesar de sabermos que os royalties escasseiam, e que alimentam apenas meia-dúzia de autores, mantém-se a cultura da borla em tudo o que rodeia os livros. A cultura do desprezo pelo trabalho e pelo tempo de quem escreve.
Pedem-se prefácios, visitas a escolas, idas a municípios, crónicas para aqui e ali, viagens além, presenças aquém, artigos de jornal, frases promocionais, e até apresentações de livros e participações em festivais literários - tudo sem a vaga intuição de que a pessoa a quem esse tempo é pedido precisa de sustento para pagar a renda, as contas, as compras de supermercado e demais sevícias. E até, pasme-se, precisa de sustento para escrever.
Estranhamente, não se assume que outras espécies prescindam de alimento. Ninguém chama um canalizador a casa sem o pressuposto de lhe pagar. Quando não lhe paga, sabe estar em falta. Mas aos escritores, cujo trabalho é tão digno como o dos canalizadores, pede-se o serviço de graça. "Sabe como é, ajudamos à projecção e visibilidade..." E até há quem peça desculpa pela desonra de sugerir honorários, mesmo que simbólicos, quando devia (isso sim) pedir desculpa por estes serem demasiado simbólicos.
Na área da cultura, o miserabilismo, o choradinho orçamental, o sabe como é, mais parece um fetiche. E nós que escrevemos - "mea culpa" também -, artistas sem vocação para a cobrança, frequentemente nos falta responder com clareza: "Agradeço a proposta, mas isso traduz-se em quanto? É que eu também tenho sistema digestivo."
Escritor