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Areabilitação urbana (requalificação, regeneração, recuperação, etc.) continua a oscilar entre o estratégico, o programático e o simplesmente instrumental, variando a perspectiva consoante as personagens, as circunstâncias e as prioridades políticas, sociais, económicas, laborais, eleitorais ou outras. Contudo, a experiência aponta já para a existência de adquiridos suficientemente consistentes nesta matéria e começa a ser tempo de libertar a realidade de efabulações que são tudo menos factores de transformação positiva da nossa realidade urbana.
A cidade precisa de ser (decididamente) repensada como espaço de vida comunitária organizada. Perguntar-se-á, pois, com que referências, com que modelos, com que "tradições" e, portanto, com que critérios? O século XX deixou duas ideias base fundamentais: a cidade concebida com base na "unidade de vizinhança", tal como Clarence Perry a teorizou, em 1920, e a cidade concebida com base na "unidade de habitação", tal como a "Carta de Atenas" a teorizou, em 1933. No fundo, podemos dizer que as nossas cidades de hoje são ainda as que resultaram do cruzamento destas duas ideias, às quais associamos modelos distintos: à "unidade de vizinhança" associamos a "cidade histórica", ou seja, a cidade da rua (de circulação pedestre) e da casa e à "unidade de habitação", associamos a "cidade moderna", ou seja, a cidade da via (de circulação segregada, mecânica de um lado e pedestre do outro) e o "bloco" isolado de habitação plurifamiliar. A questão é, pois, a de saber se ainda estamos a caminhar com um pé em cada uma destas tradições sem delas nos libertarmos completamente ou se, em alternativa, estamos já a construir uma "nova tradição" a que correspondem novos modelos e novos critérios para o desenho e a concepção das nossas cidades de hoje.
Por outro lado, a cidade não pode deixar de estar continuamente em reabilitação porque, em boa verdade, já não há cidades novas. Fazer cidade é o mesmo que reabilitar cidade e este trabalho não tem nem pode ter fim. A reabilitação é uma questão do quotidiano e não pode ser feita sem uma visão global dos problemas. Reabilitar não é, por isso, nem um momento nem um acontecimento. Pensar o contrário leva às piores opções e à ideia tola e simplista de que "agora é que é". De facto, não há reabilitação que possa dispensar cinco exigências fundamentais: casa digna, escola por perto, emprego acessível, equipamento (diverso e de proximidade) e ambiente e espaço público de qualidade. Para além do mais, as cidades de hoje não têm só os habitantes que nela permanecem por toda a vida. As cidades de hoje são cidades de passantes, de nómadas, de ocasionais, sejam eles estudantes, turistas ou gente que vive e circula pelo Mundo e que usa, sobretudo, os espaços públicos e os equipamentos (culturais e outros) e que activam a economia. Hoje, não há cidades nem países que vivam isolados. Isso acabou. Ora, atrair e acolher todos estes "novos habitantes" não se faz reabilitando apenas o edificado, ou as ruas e os passeios ou animando dispersamente a cidade de forma efémera e circunstancial para animar os mercados. É necessário muito mais do que isso!
A reabilitação é, por isso, uma questão de cultura e uma cultura de reabilitação é essencial às cidades. Com ou sem desemprego e com ou sem crise, a reabilitação não pode ser um mero expediente para usar quando as coisas correm mal. E não compete apenas ao Estado ou aos poderes públicos. Compete também aos privados (individuais e institucionais), de qualquer modo, proprietários da cidade. Então, se assim é, por que não fazer a reabilitação da cidade como sempre foi feita, ou seja, casa a casa, lote a lote e edifício a edifício (e, também, por que não, quarteirão a quarteirão?) com gente dentro e fazendo com que "ter obras em casa" seja tão fácil e natural como respirar? Isto não significa, no entanto, que os poderes públicos não se dêem conta da magnitude da tarefa que é a reabilitação da cidade de hoje e assumam as suas e reais responsabilidades, assumindo uma outra cultura que é do bem comum, agilizando e incentivando em vez de dificultar e matar. Para isso, é essencial envolver os mil e um actores que a cidade gerou e que não podem ser dispensados, segregados ou esquecidos como tem sido prática entre nós. Construir, reconstruir e/ou reabilitar a cidade são uma e a mesma coisa. E só quem o fez bem até agora poderá continuar a fazê-lo, ainda que com novos e valiosos instrumentos. Claro que tudo isto exige políticas activas e governantes activos e conscientes da vida real. Mas por alguma ponta é urgente (re)começar e alguns (novos primeiros passos) terão mesmo de ser dados. É tempo!