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A propósito de um mal-estar físico corrosivo e irritante, veio-me à memória um desabafo do presidente da República, eu era feliz e não sabia. Na verdade, quando a vida nos corre de feição, sem grandes contradições, desgostos ou sofrimentos, nem sequer nos propomos pensar o quão voláteis e inesperadas são, ou podem ser, as ocorrências que se atravessam no nosso percurso. Não avaliamos a intensidade da dor se estamos bem, a solidão de ficarmos sós se a nosso lado permanecem os nossos afectos. Só quando perdemos ou se nos escasseia o bem-estar, que consideramos um dado adquirido, é que a consciência da nossa fragilidade se abate sobre nós com uma angústia e inquietação avassaladoras. É assim em tudo! Corremos para a vivência do dia a dia, anestesiados, no nosso mundinho. Sem pensar, sem reflectir na exigência de estar atento ao mundo que nos rodeia, a que a condição de ser humano nos obriga. Vários autores glosaram o tema da indiferença pelo sofrimento do outro e das consequências de tal atitude para nós próprios. Brecht, de forma assertiva e contundente, apela a uma introspecção profunda sobre a nossa insensibilidade e desumanização, ao escrever que - tradução livre - primeiro levaram os negros, mas não me importei com isso, pois não era negro. Em seguida levaram alguns operários, mas não me importei, eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis, mas não me importei porque eu não era miserável. Depois agarraram os desempregados, mas como eu tinha o meu emprego, também não me importei. Agora levam-me a mim, mas já é tarde! Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo... É a este estádio de indiferença que temos de resistir. Não nos pode ser alheio o sofrimento das vítimas inocentes das guerras, da fome, da sede, do ódio, da raiva. A dignidade humana é inalienável e defendê-la é afirmar o primado da paz, da solidariedade, da justiça e da fraternidade entre todos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi proclamada na Assembleia Geral da ONU, em 10 de Dezembro de 1948. No seu art.° 13.°, n.° 1, afirma-se que toda a pessoa tem o direito de circular livremente e escolher a sua residência no interior de um Estado. O art.° 15.°, n.° 1 da CRP, determina que os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português. O n.° 2 do seu art.° 16.° impõe que as normas constitucionais e legais relativas aos direitos fundamentais sejam interpretadas e integradas de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. As leis que têm como destinatário os imigrantes, os migrantes e os apátridas devem arrumar-se num balizamento de tratamento digno e humano, independentemente da sua etnia, religião ou crença, porque todos pertencem e integram a grande e única família humana existente no Planeta. Preocuparmo-nos com o nosso outro é atitude que se nos impõe, de contrário, um dia acordaremos sós num Mundo de tirania e opressão.
*A autora escreve segundo a antiga ortografia