Reflexão sobre princípios de jornalismo a propósito de uma crónica não publicada
No JN, que pertence ao grupo Controlinveste, de Joaquim Oliveira, não há nenhuma pressão para que os conteúdos das publicações sejam estes e não aqueles. Nenhuma pressão.
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A não publicação da crónica de Mário Crespo na edição de segunda-feira trouxe para a praça pública questões sobre o que é e deve ser o jornalismo e as suas relações ou subserviências com o poder que interessa esclarecer perante os leitores do JN. A uma direcção de jornal, e em especial ao seu director, está confiado um papel de gestão de um espaço noticioso, segundo regras estabelecidas. O que interessa, neste momento, é partilhar com os leitores do jornal alguma reflexão sobre o jornalismo.
1- Até domingo passado nem o director nem qualquer elemento da direcção do jornal tinha tido uma conversa crítica com qualquer dos colunistas do JN sobre o conteúdo das suas crónicas.
Que as páginas de Opinião são um espaço de liberdade pode atestá-lo qualquer um dos colunistas que aqui escreve ou escreveu, pois com nenhum houve alguma vez qualquer atrito ou reparo sobre as suas crónicas. Como é bom de ver, essas crónicas versaram assuntos diversos, incluindo obviamente os assuntos políticos e incluindo obviamente críticas severas aos protagonistas políticos.
As crónicas que Mário Crespo aqui escreveu ao longo dos mais de dois anos de colaboração foram, aliás, das mais incisivas. Fê-lo com total liberdade, semanalmente. E nunca ninguém questionou o jornal se aquelas eram opiniões do JN, porque é claro para todos que a opinião dos colunistas é apenas a opinião dos colunistas e que a opinião do jornal só é vinculada por um editorial.
2- O que de diferente se passou com o artigo previsto para segunda-feira passada é que ele, no entender do director, não era um simples texto de Opinião. Mário Crespo noticiava uma alegada conversa de restaurante que lhe tinha sido relatada por um terceiro e em que os intervenientes se referiam a ele, Mário Crespo, em termos tidos por desprimorosos e ao engulho que ele representaria para o Governo.
O que transmiti a Mário Crespo, e ontem ficou consignado em nota editorial, é que o seu texto era "quase uma notícia"e " fazia referências a factos que suscitavam duas ordens de problemas: por um lado necessitavam de confirmação, de que fosse exercido o direito ao contraditório relativamente às pessoas ali citadas; por outro lado, a informação chegara a Mário Crespo por um processo que o JN habitualmente rejeita como prática noticiosa; isto é: o texto era construído a partir de informações que lhe tinham sido fornecidas por alguém que escutara uma conversa num restaurante." O telefonema para Mário Crespo visava que tentássemos os dois encontrar uma solução, uma vez que a publicação do texto me levantava sérias e fundadas dúvidas. Mário Crespo optou por retirar, repito: Mário Crespo optou por retirar, pura e simplesmente o artigo e cessar ali mesmo a colaboração com o JN.
Lamento, apenas, a hora tardia (23 e 15 e não meia-noite como Crespo tem referido) a que o contacto foi estabelecido. O facto é que o texto só foi visto - como é normal no JN - à hora de fecho, na altura de a direcção dar o visto de bom à página; e, estando eu de folga, só tardiamente fui alertado por outro membro da direcção para o conteúdo do texto. Mas é outra prova de boa-fé: no JN os textos de Opinião são directamente encaminhados para as páginas.
3- Do que atrás fica exposto só por má-fé se pode concluir que a decisão de não publicar o texto em questão visava evitar uma censura ao Governo. Tantas que foram publicadas, fossem opiniões de colunistas ou notícias do próprio jornal, e logo o reparo haveria de cair sobre um texto fundamentado numa escuta de café, logo o reparo haveria de cair sobre um texto sem a profundidade e acutilância de outros que o mesmo Mário Crespo aqui escreveu.
É má-fé julgar, como alguns fazem, que os grupos de Comunicação Social se dividem em bons e maus. Nos bons, os jornalistas fazem o que as suas consciências e os princípios éticos e deontológicos em vigor mandam; nos maus, os jornalistas vivem vergados a quem lhes paga e quem lhes paga vive vergado a quem detém o poder. São histórias da Carochinha, de moral duvidosa. Porque a realidade é esta: no Jornal de Notícias, que pertence ao grupo Controlinveste, de Joaquim Oliveira, não há nenhuma pressão para que os conteúdos das publicações sejam estes e não aqueles. Nenhuma pressão. Há discussões estratégicas e, como não podia deixar de ser, o dia-a-dia corre por conta da direcção do jornal.
Dizer o contrário é insultar um conjunto de jornalistas que aqui trabalha e que sabe que nenhuma pressão é exercida sobre eles pela direcção. A única coisa que exigimos é um jornalismo de qualidade e de verdade. E por ser assim, nunca no JN alguém da direcção mandaria perguntar ao director do nosso concorrente directo se a nota que foi publicada era mesmo assim ou se escondia a pressão da administração ou do Governo.
Perguntas como esta que me fez, ontem, uma jornalista do "Correio da Manhã" só não ofendem porque vêm de onde vêm. Mas elas têm um objectivo: visam propalar a ideia de que as dificuldades económicas, que são de todos, são terreno fértil para o vale-tudo, para a pressão sem limites e para a disponibilidade de alguns para tudo aceitarem, assim garantindo a sobrevivência.
Sim, é verdade, a Imprensa atravessa dificuldades. São, em Portugal, comuns a toda a Imprensa, pelo que não vale a pena a uns armarem-se em virgens e porem defeitos aos outros. Retenha-se o essencial: o jornalismo no seio do grupo Controlinveste, a que pertence o Jornal de Notícias, é livre.
4- O jornalismo é feito de princípios. Uma conversa de café entre duas pessoas, sejam elas quem forem, é uma conversa privada, mesmo que tida em voz alta. É um bom princípio. Há quem não o siga: há uns anos, Sousa Franco viu reproduzidas declarações que fazia à mesa de um restaurante. Sousa Franco, que tinha uma deficiência auditiva, falava muito alto. Mas o que dizia era privado, era entre si e o seu interlocutor. A conversa foi publicada. Há gente que mudou de opinião de então para cá, tendo criticado a publicação da conversa e achando agora natural a publicação da conversa escutada por terceiros na mesa ao lado.
Uma pessoa que é acusada numa notícia deve ser ouvida antes da publicação da mesma. Deve ser-lhe dado o direito de contraditar. É outro bom princípio. Há quem siga, quem faça de conta e quem ligue a recolher a posição contraditória a horas impróprias. São habilidades para contornar um bom princípio.
5- Mas o jornalismo, infelizmente, também é feito de fragilidades. Alguém escreveu já que os jornalistas têm a ousadia de escrever notícias todos os dias. É um facto. E, muitas vezes, a pressão leva a que nem todos os bons princípios e regras éticas e deontológicas sejam cumpridas. Levante-se o primeiro jornalista que nunca cometeu um errro!
O que eu quero dizer com isto é que as redacções dos jornais devem estar organizadas de forma a que esteja reduzido o risco de cometer erros destes, que podem ser fatais para terceiros. Apesar disso, os erros acontecerão e não restará ao jornalista e ao jornal nada mais do que pedir desculpa e tentar reparar o erro. É outro bom princípio.
6- Com trinta e tal anos de jornalismo não desconheço que o poder, os actores políticos gostam de uns jornalistas e não gostam de outros. Acontece-nos o mesmo a todos: gostamos mais de uns políticos do que de outros.
Também já por cá ando há tempo suficiente para saber que alguns actores políticos, tendo poder, pressionam. Podem até ser perigosos e perseguir jornalistas. Mas não vivo de convicções, preciso de factos.
É por isso que, embora correndo o risco de poder parecer cínico aos olhos dos que me conhecem menos bem, quero deixar claro que Mário Crespo, o mesmo Mário Crespo que foi colunista do JN até anteontem, pode contar com o meu apoio se e quando ficar provado que está a ser perseguido. Mas não alimentarei a sua vitimização pessoal e, sobretudo, não atropelarei princípios em que acredito.