As grandes reformas raramente se fazem com largos consensos no momento em que são realizadas. No tempo de dificuldades e de crispação em que vivemos, mais difícil ainda se torna conseguir os apoios seguros que tornem essas reformas duradouras por forma a que, passado este período, não sejam as reformas reformadas. Há hoje uma maioria parlamentar conjuntural que assegura no Parlamento a viabilização das propostas do Governo. Mas isso não chega quando se procura mexer na estrutura do edifício democrático. É indispensável alargar a base de entendimento, ouvir, negociar, ceder para conquistar e trazer para o processo a mais alargada base possível.
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Vem isto a propósito da recente Proposta de Lei do Governo sobre o regime financeiro das autarquias locais e das entidades intermunicipais, que agora deu entrada na Assembleia da República. Comprometido no memorando assinado com a troika a proceder à reorganização da administração local, o Governo reduziu o número de freguesias, estabeleceu o regime jurídico das autarquias locais e o estatuto das entidades intermunicipais (a que me referi em anterior crónica) e propõe-se desta feita alterar a Lei das Finanças Locais.
Se há reforma que constitui uma das grandes referências do 25 de Abril, ela é a da autonomia do Poder Local. Os 37 anos que nos separam das primeiras eleições democráticas consolidaram um trabalho insubstituível em prol do bem-estar das populações e permitiram que se estabelecesse uma relação de proximidade com os cidadãos, impensável noutras instâncias de poder político. Constituindo a Lei das Finanças Locais um dos alicerces desta autonomia, alterá-la profundamente requer sensatez, diálogo, concertação.
Acontece que o memorando assinado com a troika tem prazos definidos para a reorganização da administração local e determina que tudo deve ser preparado para se tornar eficaz no início do próximo mandato autárquico. Mais preocupado com os prazos do que com a essência do problema, o Governo atirou-se para a frente e apresentou no Parlamento uma proposta já considerada inaceitável pela generalidade dos autarcas.
O Conselho Geral da Associação Nacional de Municípios, onde têm assento autarcas de todos os partidos políticos, reduz a cinzas a proposta do Executivo. Por falta de ponderação e apenas para mostrar serviço, o Governo comprou uma guerra de que dificilmente sairá bem.
Sucede que em tempo de crise e quando instados a contribuírem para o controlo do défice público, os municípios deram pronta resposta positiva, objetivamente reconhecida por todos. E aduzem argumentos de peso: apenas 3% da dívida das Administrações Públicas é dos municípios, sendo 95% da responsabilidade do Governo; e que "com apenas 8,9% das receitas do Estado e 7,2% das despesas do mesmo Estado, os Municípios suportam cerca de 36% do investimento público do país" (valores disponibilizados na Síntese da Execução Orçamental de Janeiro de 2013 da Direção-Geral do Orçamento). E mais. Em pleno período de profunda crise, enquanto o Governo aumentou a dívida pública do Estado, os municípios diminuíram a sua dívida.
Está criada a rutura. E é pena. A decisão dos municípios é a de "...rejeitar, inequívoca e frontalmente, a Proposta de Lei de Finanças Locais". Um pouco mais de sensatez e de respeito pelas regras democráticas teria levado a que, depois de se sentarem à mesma mesa o Governo e os legítimos representantes do Poder Local, fosse encontrado o consenso antes de ser apresentada uma proposta na AR. Até porque mexer na lei para a alterar para pior não é solução. Mais vale deixar tudo como está.
Nem se percebe muito bem o porquê da gratuitidade deste confronto. A menos que o Governo entenda que, por estarem em final de mandato e sem continuidade os presidentes de Câmara mais experientes e com maior visibilidade, advenha daí um menor empenhamento na luta pela defesa dos interesses dos municípios.
Se este taticismo esteve na base da atuação do governo, depressa se provou que foi um erro. Poderá, ainda, haver recuos. Oxalá haja. Se assim não acontecer e se a Proposta de Lei vier a ser aprovada apenas com os votos da maioria parlamentar, esta será uma reforma de curta duração. Durará o tempo que este governo durar.