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Por mais esforçada que seja a busca, não se consegue encontrar um só português cuja preocupação primeira seja rever a Constituição. Será defeito de quem procura, evidentemente, porque há pelo menos um punhado de portugueses - Pedro Passos Coelho e a sua entourage - que a elegem como prioridade das prioridades, para dar solução aos problemas do país.
Nestas ocasiões, sabe-se de cor o argumentário, aliás resumível a uma frase: reformas. É a palavra mais gasta da política portuguesa, pelo menos desde a reforma... agrária. Não há político que se preze que não queira ostentar reformas - estruturais, de preferência - no curriculum. E alguns dos que hoje as reclamam são os mesmos que, já lá vão uns anos, juraram tê-las concretizado. O actual presidente da República não o fez por menos: encaixou-as todas na obra "Reformas da Década", o seu legado como primeiro-ministro. Foi em 1985 e de duas uma: ou não foram suficientes ou voltamos agora a precisar de novas reformas - do sistema político, da organização económica, das leis laborais, segundo o PSD.
O impulso dado ao processo de revisão constitucional por Passos Coelho tem pelo menos uma vantagem: clarifica o posicionamento político - diria ideológico - da nova direcção social-democrata, aparentemente não tão consensual como desejaria.
As propostas do PSD abrem, de facto, caminho a mudanças de grande alcance, agradem ou não. Apenas dois exemplos, na saúde e no trabalho. Determinar que o acesso ao sistema público de saúde não pode ser "recusado por insuficiência de meios económicos" equivale a remover o princípio do acesso universal, reformulando, ao mesmo tempo, as funções do Estado. Substituir a proibição de "despedimentos sem justa causa" por "despedimentos sem razão atendível" não é alteração meramente semântica; é de paradigma. Pergunta: dificuldades de mercado, ainda que conjunturais, serão "razão atendível"?
A bola passou para o lado do PS, que não pode simplesmente assobiar para o ar, porque é parceiro incontornável do PSD sempre que se trata de mexer na Constituição. É um desafio muito sério, aquele a que Sócrates é chamado a responder.