Regionalização e inteligência coletiva territorial
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Não há, como sabemos, nenhum determinismo territorial na forma de ocupar o espaço. O desenvolvimento é, antes de mais, um problema de prioridades e solidariedade políticas. A forma como o poder político e a administração se relacionam com o território, por intermédio do planeamento, determina, desde logo, o grau de aproveitamento de recursos e de coesão interterritorial. A escassez de recursos é, acima de tudo, um problema de política de desenvolvimento, ou seja, a perspetiva global da abordagem, a motivação territorial e a tecnologia podem resolver, pelo menos parcialmente, o problema da escassez. Isto é inteligência coletiva territorial.
Já sabemos, também, que a globalização e o mercado único europeu tornam mais difícil a endogeneização da base económica regional em virtude de os investimentos serem cada vez mais extrovertidos. Este movimento significa, também, que a região deve realizar uma parte importante das suas atividades no exterior das suas próprias fronteiras, pelo que as competências regionais devem ser acrescidas de forma correspondente. Isto significa que, no quadro do mercado único europeu, a atividade do planeamento, como instrumento de autorregulação territorial, não faz sentido sem uma política de desenvolvimento regional e uma política de relações exteriores da região. Isto é inteligência coletiva territorial.
Sabemos, igualmente, que em Portugal as regiões funcionais que temos não se podem fixar a si próprias uma intencionalidade política clara na forma de uma política de desenvolvimento regional ou de uma política de relações exteriores da região. Nestas condições, o planeamento corre o risco de ser, acima de tudo, uma forma esquemática e simplista de integração e controlo dos vários aparelhos desconcentrados da administração central que têm na sua posse uma tabela de todas as necessidades mensuráveis. Isto quer dizer que os Programas Operacionais Regionais não podem ser um mero somatório de instrumentos e medidas e um manual para obter ajudas públicas, devem ser, em vez disso, convertidos em verdadeiros Planos de Desenvolvimento Regional, de banda larga, concebidos como um guia para a ação e contemplando, pelo menos, três eixos de intervenção: os sistemas regionais de inovação produtiva, a qualificação dos sistemas urbanos regionais e a organização dos espaços rurais de baixa densidade. Sem uma intencionalidade política, porque o planeamento não se faz com proclamações semânticas, também não há resultados, mas apenas despesas. Sem resultados não há avaliação, não há planeamento iterativo e interativo, isto é, não há inteligência coletiva territorial.
Sabemos, ainda, que o small is beautiful não pode ser um critério relevante para o planeamento. Uma suspeição fica, desde logo, lançada sobre os territórios locais, a saber, o Estado-administração relaciona-se com os municípios, quase hipocritamente, porque são formações demasiado restritas para poder competir com o poder central. Se não existem estruturas políticas regionais que retenham a informação politicamente pertinente a este nível, todo o esforço de participação acaba por ser uma tarefa ingrata e inglória, sem compromisso firme entre as partes e, portanto, inconsequente. As restrições conjunturais, a complexidade dos problemas, a urgência das decisões, as exigências da negociação comunitária, a necessidade de reprogramação, são fatores que desgastam o sistema de administração multiníveis e o colocam, porventura, na defensiva. O resultado final é conhecido: um excesso de bens públicos locais, não-transacionáveis, para descansar a má consciência dos políticos do centro, e uma distribuição de recursos públicos escassos com um elevadíssimo custo de oportunidade. Isto é inteligência coletiva territorial, ou talvez não.
Sabemos, também, que a chamada autorregulação territorial das economias locais e regionais é muito limitada. Os conceitos de autónomo e funcional exprimem duas formas diferenciadas de entender e praticar o relacionamento do poder político com o território e, por isso, também, dois modos diferentes de inscrever no território um programa regional mobilizador. Historicamente, pode dizer-se, o confronto entre o poder central e o poder local esvaziou os territórios regionais, qual terra de ninguém. Os seus sucedâneos imediatos, os distritos e as províncias, pouco mais serviram do que praticar um regionalismo de ocasião. Esta carência fundamental não permitiu o desenvolvimento do processo de autoidentificação territorial. Os ciclos de emigração, o voto com os pés, são a ilustração mais vincada desta ausência de produção de território regional. A atividade económica ficou, igualmente, prisioneira desta dicotomia política: de um lado, o abuso de posição dominante do poder central atrofiou a capacidade de empreendimento, do outro, a proliferação do poder político local, paroquial e corporativo, foi impotente para promover investimentos estruturantes do espaço intermunicipal e supramunicipal. O resultado final, uma inteligência coletiva territorial muito minguada.
Neste contexto não surpreende que as regiões funcionais portuguesas se defrontem com sérias dificuldades em elaborar uma imagem que seja representativa do interesse territorial. Os mediadores ou intermediários do interesse territorial não estão acreditados nem são ouvidos na corte. É certo, a administração central facultará, de bom grado, às regiões-funcionais uma imagem racionalizada para a sua reprodução. Esta falta de um espaço de referência para experiências territoriais infranacionais pode ter um efeito contraproducente, qual seja, o de remeter para o localismo a responsabilidade de se exprimir em nome dos territórios regionais. Chegados aqui, estamos perante duas imagens contraditórias: a imagem “QCA”, uma abstração racional produzida no centro da representação nacional, e a imagem “PDM”, uma representação corporativa do território municipal de iniciativa camarária. Em definitivo, imagens racionalizadas e estereotipadas do território não ajudam a construir uma inteligência coletiva territorial.
Finalmente, salta à vista que um dos poucos lugares centrais de racionalidade e coerência das abordagens sectorial, temática e territorial será o nível das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), tanto mais quanto se forma um consenso alargado sobre a convergência das escalas administrativas para este nível. É tempo de reabilitar a orgânica de planeamento para este nível, concebendo e executando o Plano de Desenvolvimento Regional de cada região como o centro de racionalidade do novo modelo institucional de planeamento e gestão. De facto, importa dizê-lo, é necessário recuperar as funções nobres de planeamento, extensão e avaliação, que as associações sectoriais e regionais nunca foram capazes de levar a bom termo. As políticas públicas ficaram sem retaguarda técnica e logística no terreno, pois as associações abandonaram as funções de assistência técnica para assumirem as modernas tarefas do lobbying institucional. Esta mudança fundamental de orientação estratégica das associações sectoriais, da assistência técnica para o lobbying institucional, politizou os grupos de interesse e desvirtuou o sentido da negociação. Os resultados estão à vista. A inteligência coletiva territorial foi uma das suas primeiras vítimas.