Não me refiro aos armazéns em chamas na cidade de Londres nem ao saque de lojas de produtos electrónicos e desportivos, minuciosamente registado pelas câmaras de videovigilância. Não me refiro sequer a um vídeo comentado pelo chefe do Governo do Reino Unido, com intuitos de edificação moral, que exibia uma criança tombada num passeio, roubada por crianças mais velhas que simulavam socorre-la. Não.
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A Europa está familiarizada com estes rituais de impiedade e destruição gratuita, pelo menos, desde a queda do Império Romano. Como poderiam estes sinais de espectacular esbanjamento que agora chegam a nossa casa em alta definição representar o regresso à barbárie? O crescimento ilimitado do crédito e a omnipresença da publicidade contribuíram mais para a destruição do conceito moderno de propriedade privada que todas as doutrinas sociais dos últimos três séculos. Provavelmente, alguns dos suspeitos das pilhagens londrinas que agora enfrentam a justiça inglesa terão ponderado em algum instante o dilema ético de julgar aquela "oportunidade" como um roubo ou apenas como inusitada "promoção" comercial.
A estupefacção apoderou-se dos espectadores ocasionais e até a Polícia ficou dominada por uma paralisia cúmplice. Quinze dias depois do início da onda de vandalismo, mais de três mil suspeitos foram detidos pelas autoridades e cerca de mil foram já objecto de acusação criminal. A estes números há que juntar incalculáveis prejuízos morais e materiais, além da perda irreparável de vidas humanas. A dimensão dos acontecimentos, a propagação vertiginosa da onda espontânea de violência juvenil e a adesão mais passiva ou participante que suscitou, transversal a múltiplos grupos sociais, não podem ser descritas como mera erupção de criminalidade, ser confinadas a certas "bolsas sociais" ou sequer a uma alegada "underclass" dependente dos apoios sociais que se deveriam suprimir, como castigo. Tal reacção é um expediente banal de regimes ditatoriais. Não é própria do Governo da mais antiga democracia da idade moderna. Só espero que, por excesso de zelo na perseguição dos utilizadores do Facebook que "incitaram a motins na cidade de Londres" ou por eventual défice de cultura musical, nenhum polícia ou governante londrino se lembre de inquietar sir Mick Jagger por ter lamentado, algures: "Que pode fazer um pobre rapaz / Além de cantar num grupo rock? / Porque na sonolenta cidade de Londres / Não há mais lugar para um lutador de rua / Não" (Rolling Stones - Street Fighting Man", Londres, 1968).
O estado moderno nunca foi uma ideia popular. A própria democracia, descontadas as versões utópicas radicais, nunca foi um ideal que arrastasse multidões. A regulação jurídica dos sistemas de representação democrática entretém audiências modestas nos meios de Comunicação Social. A vantagem incomparável das democracias constitucionais do nosso tempo reside na demonstração de que as sociedades humanas não estão condenadas à tirania e aos caprichos dos poderosos. Todavia, os sistemas democráticos não oferecem garantias contra o infortúnio nem são remédio certo para a prosperidade. Com frequência, as sociedades democráticas defrontam crises graves que destroem o consenso entre os seus membros e ameaçam a sua própria subsistência. A democracia é um sistema muito frágil que carece de contínua legitimação. E aqui se coloca o risco de regresso à barbárie.
Os movimentos sociais que abalaram violentamente a sociedade inglesa são sintomas sérios de uma ruptura vasta que tão-pouco se circunscreve às ilhas britânicas. Uma corrente política neoconservadora - impropriamente designada por alguns como "neoliberal" - comprometeu em expedições guerreiras as finanças dos Estados Unidos e tomou conta de quase todos os governos da União Europeia. Está obcecada pela competição e a produtividade, virtudes certas para assegurar o desejado crescimento económico de que o Estado seria o pior inimigo por minorar as humanas contingências e alimentar a preguiça em vez de a castigar como merece...