<p>A ninguém surpreende que a Igreja Católica se manifeste contra a consagração legal de casamentos homossexuais. Se os admitisse, sentir-se-ia a trair os seus valores matriciais, a começar pela preservação da família tradicional. Como a questão é colocada no plano dos princípios, que não são transaccionáveis na bolsa, o debate emperra em vez de fluir. A discussão dos seus fundamentos arrisca-se a ser um exercício inútil, porque desse reduto, quase dogmático, a Igreja não está disposta a abdicar. </p>
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Neste sentido, pouco importa se é ou não sensível aos ventos da modernidade. Se não aceita assimilar um novo "dicionário" (para usar a expressão do padre Manuel Morujão, secretário da Conferência Episcopal) no qual a palavra família ganhou novos significados. Se recorre a argumentos incompreensíveis, como o de que casamento entre pessoas do mesmo sexo é "um caminho antropologicamente errado". Tratando-se de princípios, alicerces das convicções, esta problemática quase é equiparada à da visão religiosa das origens da Humanidade. Afinal, Charles Darwin está mais vivo do que há 150 anos, mas o Criacionismo não se extinguiu.
Tem a Igreja o direito de exprimir os seus pontos de vista e de bater-se por eles? Claro que tem! O ponto não é o conteúdo da tomada de posição; é o assumido salto para a esfera política, é exortar os fieis a fugirem a sete pés de partidos que tais propostas apresentam e deixar nas entrelinhas a ideia de que está disponível para a guerra. Mau sinal: quando a religião se mete na política, entorna-se o caldo. Ao entrar no território de César, a Igreja admite disputar um jogo que não é o seu. Expõe-se à reacção dos partidos, cujo espaço passa a partilhar. A última vez que o fez, saiu-se muito mal. Foi quando o povo votou maioritariamente a a despenalização do aborto.
Trata-se de uma questão de legitimidade(s). A Igreja detém legitimidade perante os seus crentes - aderir a uma confissão religiosa, como a um clube ou a uma associação, é um acto de vontade, que também pressupõe o acatamento de regras. José Sócrates, hoje como candidato à liderança do PS, amanhã como "candidato" a primeiro-ministro, também detém legitimidade para propor o que bem entender. Incluindo o casamento entre homossexuais. Civil, porque véu e grinalda não lhe dizem respeito.
Neste plano (político, saliente-se) fica tudo clarinho como água. O PS não engana ninguém. Mostra as cartas e, simultaneamente, fica amarrado ao compromisso, para não alegar mais tarde que lhe falta "autorização" dos eleitores, como fez recentemente. E todos nós sabemos ao que vamos. Vota que quer - crente, ateu ou agnóstico - se atribuir à questão um papel decisivo na vida nacional.