República digital e governança democrática (I)
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Uma das características mais marcantes da república digital diz respeito à relação entre a digitalização da política e a natureza da governação democrática. Nesta matéria a minha tese, em termos gerais, pode ser enunciada do seguinte modo: depois do estado sólido da modernidade e do estado líquido da pós-modernidade é, agora, a vez do estado gasoso da república digital. Sobre esta relação, um corolário lógico poderia ser enunciado da seguinte forma: a república digital puxa-nos para o centro através do protocolo e da instrumentação algorítmicas, a sociedade do conhecimento puxa-nos para a periferia através das redes descentralizadas e o saber distribuído. A governação democrática hoje, ou seja, o governing vertical da administração pública convencional, precisa de ser reinventada e recriada tendo em vista uma nova inteligência institucional e coletiva, mais colaborativa e policêntrica, a governance horizontal do estado-administração em rede. E é assim porque o código algorítmico não tem inteligência institucional própria e, muito menos, capacidade para gerar inteligência coletiva, intencionalidade e projeção estratégicas. Esta dupla entrada da governação democrática, from governing to governance, remete-nos, ainda, para o excelente livro de Daniel Innerarity Uma teoria da democracia complexa (2021) que recomendo vivamente.
Ao longo da história, a politização de certas questões permitiu poupá-las ao determinismo e à inevitabilidade e, assim, inscrevê-las na discussão pública como objeto de livre-arbítrio e decisão. Ora, neste século, a grande politização que nos espera é a do mundo tecno-digital, isto é, agora o digital é o político. Vejamos, então, alguns aspetos da relação complexa entre digitalização da política, república digital e governança democrática.
A digitalização da política
Uma das facetas mais intrigantes do próximo futuro é aquela que diz respeito à aceleração e divisibilidade tecnológicas e sua transferência para os domínios infinitamente pequenos da nossa liberdade individual, isto é, os pequenos nadas da nossa vida quotidiana que, agora, são transformados em objetos de consumo industrial que, doravante, ficam ao alcance de uma oferta digital ou digitalizada, ao dispor da conexão generalizada da internet das coisas (IOT) ou da indústria digital de serviços personalizados.
A vida política, em especial, será fortemente atingida pelos 4V da transformação digital, a saber: a velocidade, o volume, a volatilidade e a verdade. Assim sendo, a digitalização da política poderia ser enunciada, esquematicamente, da seguinte forma:
- <p align="JUSTIFY">A abreviação do presente, tudo é efémero, fugaz e furtivo,</p>
- <p align="JUSTIFY">O tempo esgota-se, prevalece a moda, a agitação e o improviso,</p>
- <p align="JUSTIFY">A política é um mero ato de consumo corrente,</p>
- <p align="JUSTIFY">A internet dos dispositivos é um mero simulacro de participação,</p>
- <p align="JUSTIFY">Tudo padece de uma grande falta de contexto e inteligibilidade,</p>
- <p align="JUSTIFY">A representação política é momentânea e muito oportunistica,</p>
- <p align="JUSTIFY">Prevalece o poder normativo, de cima para baixo,</p>
- <p align="JUSTIFY">Há uma crise cognitiva grave, não há poder de baixo para cima,</p>
- <p align="JUSTIFY">Prevalece a ideologia do risco moral e do passageiro clandestino,</p>
- <p align="JUSTIFY">Prevalece a lógica da privatização do benefício e a socialização do prejuízo.</p>
Acresce que, na digitalização da política existe um risco real, qual seja, o de que a governação seja dominada pelo código algorítmico e se transforme numa governação onde prevalecem, sobretudo, as propriedades emergentes das máquinas inteligentes, do cálculo matemático, da automação e da inteligência artificial, da computação periférica, as quais mudam profundamente a nossa inteligibilidade das coisas e cuja expressão discursiva, no final, pode ser descrita nos seguintes termos: o reflexo em vez da reflexão, a correlação em vez da causalidade, os dados em vez dos conceitos, a presunção do acontecimento em vez do acaso, o suspeito em vez do culpado, o determinismo em vez do livre arbítrio, o governo uma indústria ineficaz e nós uns idiotas úteis.
Ora, a república digital, na nossa aceção mais compreensiva, não significa uma sociedade dominada pelo código algorítmico, mas, antes, uma sociedade onde os recursos cognitivos e o saber distribuído são colocados ao serviço da sociedade em rede, dos seus bens comuns e do bem-estar dos cidadãos. E é assim porque, como dissemos, o código algorítmico não tem inteligência institucional e, muito menos, capacidade para gerar inteligência coletiva e estratégia colaborativa. E há aqui muito espaço para a esperança política e a política da esperança.
A cultura política da república tecno-digital
Não somos ainda uma sociedade do conhecimento e, talvez por isso, não somos ainda uma sociedade civil à maneira de Tocqueville, a sociedade dos interesses associativos organizados e, muito menos, o associacionismo dos interesses. Estes dois défices estruturais acumulados explicam e justificam a razão pela qual a inteligência institucional e coletiva da nova república digital tarda em emergir, correndo mesmo o risco de ser capturada pela sociedade e a governança algorítmicas, uma perversão da república digital na qual o poder é determinado pelo código digital e os mestres-algoritmos, no quadro de uma globalização onde imperam as grandes tecnológicas e os grandes fundos de capital de risco. Depois da globalização do capital e do trabalho chega agora a globalização do saber distribuído sob a forma de crowdsourcing, crowdlearning e crowdfunding, mas, também, de múltiplas modalidades de nomadismo digital. Neste contexto, vejamos, então, o que é preciso realizar para aproximar e modernizar cultura política e república digital:
- É preciso revisitar a cultura política que faz a transição do estado-silo para o estado-plataforma e o estado-rede e redesenhar as instituições de governo e administração nessa direção,
- É preciso rever as hierarquias e as estruturas dos ecossistemas de conhecimento e, por essa via, reinventar a cultura de governação num sentido menos normativo e mais cognitivo,
- É preciso rever o poder das técnico-burocracias, pois o comando e controlo não se revelam procedimentos adequados para os processos sistémicos de elevada complexidade,
- É preciso cumprir a condição de diversidade de pontos de vista, pois uma articulação inteligente melhora a decisão final, sem nunca esquecer que uma coisa é a cooperação e a performance entre atores, outra é a cooperação entre instituições,
- É preciso não confundir a geração de conhecimento e o saber de uma organização com o somatório de conhecimentos pessoais dos atores principais, pois entre eles intrometem-se as regras e a cultura de uma organização, isto é, os procedimentos, rotinas e processos de mediação e os protocolos de negociação, decisão e resolução de conflitos.
(continua……)
República digital e governança democrática (II)
Como dissemos no primeiro artigo, a racionalidade discursiva da república digital requer uma dissonância cognitiva, ou seja, precisa de uma cultura que proteja e promova as diferenças cognitivas, isto é, temos de caminhar rapidamente de um estilo deliberativo menos normativo para um estilo mais cognitivo e apoiado pelos dispositivos tecno-digitais. Neste sentido, a esperança política reside, justamente, na infraestrutura cognitiva da governação democrática (Innerarity, 2021), capaz de gerar mais e melhor inteligência institucional e coletiva para levar a bom termo uma estratégia colaborativa e cooperativa. Vejamos algumas das suas principais características:
- A infraestrutura da governança democrática será, doravante, uma combinação inteligente de recursos cognitivos (o saber), de recursos de autoridade (o poder) e de recursos da vontade (o querer), convergindo para formas inovadoras de inteligência institucional, coletiva e colaborativa (a criatividade),
- A armadilha governativa e administrativa dos períodos curtos eleitorais retira muita eficácia, eficiência e equidade à ação política, tal como é praticada ainda hoje; a democracia eleitoral, tal como está, parece pouco dotada para aprendizagens reflexivas ou de segunda ordem e para a aquisição de capacidade estratégica e colaborativa em ambientes cada vez mais complexos, ou seja, é urgente uma estratégia para lidar com esta armadilha dos horizontes curtos e descontinuados,
- Na república digital assistimos a uma mudança estrutural da esfera pública (Habermas, 2022) onde o código algorítmico, cada vez mais dominante, não tem, todavia, vocação para a inteligência institucional e coletiva; por isso, precisamos de mais e melhor teoria do agir comunicacional e processos e procedimentos de inteligência coletiva partilhada que relacionem positivamente comunidades online e comunidades offline,
- Na república digital a política convencional tem de abandonar a sua obsessão normativa, jurídico-administrativa, hierárquica e vertical, e o modo normativo, ainda dominante, tem de ser complementado com o modo cognitivo e criativo; ou seja, a governação democrática deverá articular os procedimentos respetivos de duas subsidiariedades, a descendente, mais normativa, e a ascendente, mais cognitiva e criativa,
- Na república digital, o poder da autoridade, entendido e exercido como ordem, comando e controlo, não é um procedimento adequado aos processos sistémicos de elevada complexidade e interdependência; além disso, a inteligência coletiva da democracia perdura para lá da inteligência dos seus dirigentes ocasionais e os seres humanos quando atuam livremente e em comunidade têm condições para realizar o que é inverosímil e mais ou menos improvável,
- Na república digital, governar é, doravante, governar de modo cooperativo, onde quase tudo depende do dispositivo institucional que escolhemos; a verdadeira riqueza das nações consistirá, cada vez mais, no seu saber distribuído e respetiva inteligência coletiva, mas isso não nos deve fazer esquecer as nossas limitações e a melhor maneira de gerir a incerteza e a ignorância;
- Na república digital a utilidade social do respeito é uma característica indispensável da infraestrutura da governança democrática; quando respeitamos, os outros, a natureza, nós próprios, cresce a inteligibilidade e a cooperação e tudo fica mais fácil, em especial, o contrato social que respeite as gerações que nos antecederam (os mais idosos) e as gerações que nos vão suceder (os mais jovens),
- Na república digital a infraestrutura democrática da governação deve proteger a sociedade contra o risco moral, o passageiro clandestino e a socialização do prejuízo, isto é, tem de levar em linha de conta os benefícios e custos de contexto, em especial, as externalidades positivas e negativas, as entropias, sinergias e circularidades dos sistemas produtivos,
- Na república digital a infraestrutura da governação democrática não deve recear a pluralidade contraintuitiva própria da sua diversidade cognitiva, ao contrário, deve abdicar do seu normativismo excessivo, sobretudo aquele que é veiculado e praticado pelo chamado círculo das inerências, o círculo por onde transitam os amigos do sistema e os interesses de natureza corporativa e partidária.
Notas Finais
Estamos numa verdadeira encruzilhada. Depois da globalização do capital e do trabalho chega, agora, a vez da globalização do conhecimento e do saber distribuídos, operada sob múltiplas formas de crowdsourcing, crowdlearning e crowdfunding, mas, também, das plataformas que enquadram e promovem o nomadismo digital. Até lá, enquanto esta transição tem lugar, temos de acautelar que o negócio informático, a ignorância digital e a guerra cibernética não destruam o lado mais benigno da república digital e da governança democrática. Com efeito, onde antes estavam os bancos de investimento estão hoje os grandes fundos de risco, onde antes estavam os trabalhadores com contrato coletivo estão hoje os trabalhadores nómadas e intermitentes das plataformas, onde antes estavam os cientistas e as relações interinstitucionais mutuamente vantajosas estão hoje os grandes cartéis tecnológicos, o capitalismo financeiro e as imensas plataformas de crowdsourcing e crowdlearning por onde transitam os nómadas e as elites digitais e as próprias start-ups. No seu conjunto, estes grandes operadores formam um movimento vertiginoso e disruptivo que sobreaquece a circulação dos fatores de produção e muitas cadeias de valor e redes logísticas estão, hoje, experimentando uma pressão enorme e gerando muitos efeitos assimétricos na recomposição das economias nacionais e regionais. A duplicidade deste impacto sobre os territórios parece evidente. De um lado, um regresso de algumas cadeias de valor devido ao abaixamento de certos custos transacionais e operacionais, de outro, uma maior desterritorialização de outras cadeias de valor pela redução dos custos à distância. É deste duplo movimento, de regresso e distanciamento e da sua maior ou menor arritmia, que resultará o próximo ciclo de desenvolvimento sustentável dos territórios. É absolutamente necessário que a sociedade do conhecimento e a sociedade civil tomem posição sobre este duplo movimento da globalização e façam, a propósito, uma espécie de mapeamento geográfico das suas cadeias de valor em ordem a maximizar a sua utilidade e coesão territorial.
Uma última referência à transição digital que se imporá pela força do negócio digital. O centralismo político regozija-se com a transição digital, seja de Bruxelas ou das capitais, porque lhe facilita a liquidez do sistema e, portanto, a sua regulação territorial. De facto, o modelo de governança da sociedade digital avança a todo o vapor: em Bruxelas ou em Frankfurt reina o algoritmo-mestre do alto do panótico, nas capitais nacionais os servidores e seus templates, na província os dispositivos sensores e os olhos do governador. No final, a pergunta de sempre: como vamos ocupar efetivamente o território? Vamos ocupá-lo com gente de carne e osso colocada in situ ou vamos plantar dispositivos tecnológicos e digitais um pouco por todo o lado e esperar que eles debitem informação relevante e vigilante nas nossas centrais de dados colocadas ex situ? Responda quem sabe.