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1. A memória curta, na política, é um instrumento da demagogia, exatamente, esse tipo de patologia que já Aristóteles, na velha Grécia, denunciava como sendo a mais grave doença da democracia. A memória curta, na política, dispensa os seus utilizadores de demonstrar a coerência entre o que prometem e o que fizeram, entre o que recomendam e aquilo que denunciaram, dessa forma distorcendo a perceção das alternativas políticas e alienando responsabilidades próprias, tudo o que impede a prestação de contas e corrompe a substância da democracia: as opções dos eleitores tornam-se irrelevantes e os partidos parecem todos iguais porque dizem uma coisa na Oposição mas acabam todos a fazer o mesmo quando chegam ao poder... E o problema agrava-se porque a memória tende a encurtar-se cada vez mais e torna-se cada vez mais seletiva. O comportamento do atual presidente dos Estados Unidos da América é um exemplo flagrante: um "tweet" depois, já se permite ignorar o que disse ou prometeu no "tweet" precedente.
2. Salvaguardando as devidas proporções, vem isto a propósito do conteúdo de alguns discursos pronunciados no Congresso do PSD, este fim de semana. Referimo-nos, em particular, à reiteração do velho mito de que o PSD salvou o país da bancarrota provocada pelo Governo socialista em 2011, a par de uma narrativa mais recente que atribui o sucesso agora irrecusável das políticas da nova maioria - cujo fracasso, aliás, sempre deram como certo! - a uma conjuntura internacional favorável e, imagine-se, aos méritos da governação anterior, da sua governação! Quanto ao mito, sabemos que a promessa de acabar com as políticas de austeridade do Governo socialista lhes valeu a mais alta votação nas eleições legislativas de 2011 e uma maioria para governar em coligação com o CDS. O truque que usaram foi elementar: o chumbo no Parlamento do programa de estabilidade que o Governo socialista tinha acordado com Bruxelas, causa direta e imediata da bancarrota e do inevitável pedido de resgate financeiro. Do que fizeram às promessas de alívio das medidas de austeridade, testemunham, eloquentemente, os quatro anos seguintes do seu desastroso Governo... que pelo caminho perdeu um ministro das Finanças e por mistério insondável sobreviveu, em 2013, à "irrevogável demissão" de Paulo Portas.
3. Punidos pelos eleitores que lhes recusaram a maioria absoluta em outubro de 2015, PSD e CDS tentaram aliciar os socialistas e formaram Governo para prosseguir as mesmas políticas. O caso Banif, meticulosamente varrido para debaixo do tapete, só devia de ser exposto com o seu Governo já entronizado e como justificação providencial da necessidade de prosseguir o caminho de destruição económica e social que eles continuavam a acreditar ser remédio milagroso para salvar este povo indolente da sua ancestral mediocridade. De nada lhes valeu, além da oportunidade de aprovarem o seu último orçamento retificativo, já em dezembro de 2015, apresentado pelo novo Governo socialista apoiado pela Esquerda parlamentar maioritária. Por isso, aquela narrativa mais recente que tentou reivindicar para a coligação PSD/CDS o mérito do sucesso económico, social e financeiro conseguido pelo novo Governo, pela nova maioria e pelas políticas de Esquerda, não requer mais demorada análise. A memória curta e seletiva aflorada nos trabalhos do Congresso serviu apenas de ritual fúnebre na despedida da direção cessante. O que merece um comentário mínimo: já não era sem tempo!
4. Cumprido o luto, espera-se que este PSD, desembaraçado por fim dos seus monstros apocalípticos, saiba contribuir para encontrar respostas aos desafios reais que o país enfrenta, sobretudo nos setores que reclamam mais amplos consensos, como a reforma da justiça, o reordenamento do território, os projetos de descentralização e a criação das regiões administrativas inscritas na Constituição há mais de 40 anos.
DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL