Rescaldo eleitoral
Sampaio da Nóvoa obteve um bom resultado, pelos seus próprios méritos, nas eleições de domingo passado. O calendário eleitoral foi-lhe adverso e o tempo escasseou para forçar uma segunda volta que talvez pudesse mudar tudo. À realização tardia das eleições legislativas acresceu o moroso e atribulado impasse no processo de nomeação do novo Governo, que além de ter desviado a atenção dos cidadãos para o problema mais premente da governação do país, iria exibir insidiosamente as incontornáveis limitações dos poderes do Presidente que, por fim, se resignou, a contragosto, a nomear o Governo que a maioria parlamentar lhe impôs. Assim, os últimos meses dos mandatos de Cavaco Silva ilustraram de modo enfático e eloquente a real dimensão dos poderes presidenciais e o verdadeiro significado da chamada "magistratura de influência", comprovando a decadência e a irrelevância tendencial do semipresidencialismo português.
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Ao contrário de Sampaio da Nóvoa, a mensagem eleitoral e a imagem pública de Marcelo Rebelo de Sousa enquadram-se harmoniosamente neste perfil de "virtuosa impotência" que penosamente descreve os dois mandatos do Presidente cessante. A moderação distanciada do permanente comentador de toda a atualidade política, a sua bonomia e elegância, uma autoridade que emana do tom, do trato e do estilo, foram os atributos que Marcelo Rebelo de Sousa exibiu numa campanha marcada pela probidade dos meios de propaganda, pela pedagogia da "desdramatização", pelo trato coloquial e pela ausência imposta aos dirigentes partidários que lhe prometeram apoio. Se é verdade que o Presidente não governa, porque se havia de comprometer o candidato com programas e medidas que não lhe cabe cumprir? Em vez disso, indiciou preocupações e valores convergentes com as orientações políticas perfilhadas pelo seu principal concorrente e que mereceram a preferência da maioria dos cidadãos nas recentes eleições legislativas: a equidade, a justiça, o crescimento económico, a coesão social, a estabilidade política. E foi muito explícito, no esforço de se demarcar da insensibilidade social e das políticas radicais aplicadas na legislatura anterior pelo seu próprio partido, quando se proclamou a "esquerda da direita". Compreende-se o pouco entusiasmo do atual líder do PSD, nas felicitações endereçadas na noite eleitoral...
O significado do ato eleitoral não se reduz, porém, à ambivalência política da vitória alcançada por Marcelo Rebelo de Sousa. Estas eleições também confirmaram que Portugal não escapa à profunda reconfiguração que abala os sistemas políticos europeus, ainda que essas transformações possam aqui operar de forma mais subtil do que noutras paragens do Sul da Europa. Enganaram-se redondamente aqueles que se apressaram a classificar a emergência de partidos como o Syrisa e o Podemos, como um fenómeno populista e passageiro. O Syrisa continua a governar a Grécia e a aliança com o Podemos é, eventualmente, a melhor hipótese de sobrevivência dos socialistas espanhóis. O populismo não reside nos movimentos que deram expressão à revolta contra as políticas da "austeridade a todo o custo". O populismo que de facto ameaça a Europa e a democracia está com aqueles que pregam o ódio aos estrangeiros e exigem a expulsão dos imigrantes e refugiados. Populista, é a cedência de certos governos à tentativa de transformar os refugiados no bode expiatório de todos os males que nos afetam, como na República Checa ou, agora, na Dinamarca. É por isso que a surpreendente votação conseguida por Vitorino Silva merece respeito e ponderação séria. E que o excelente resultado de Marisa Matias consolida a posição do Bloco de Esquerda no espetro partidário e recompensa o acerto da política de alianças que viabilizou a alternativa política prometida pela Esquerda.
Por fim, a candidatura presidencial de Maria de Belém "pagou" o seu "pecado original"! Uma vez extinta a coligação de ressentimentos que a lançou fora de horas na corrida presidencial, fica o Partido Socialista mais livre para outros debates e contraditórios essenciais ao seu pluralismo interno e que possam assumir um significado político útil na resposta aos desafios que hoje confrontam a Esquerda e o socialismo democrático.