"Parece-me que vamos para tempos ainda mais difíceis e estamos cada vez mais perto da lei da selva: muitos assaltos, não há respeito por nada nem por ninguém, já se assaltam igrejas, pessoas de idade (...). Acho que não há milagres. O país passou muitos anos a gastar e, agora, é preciso pagar. O problema é que os sacrificados são sempre os mesmos: a classe média baixa. (...) Os pobres vão ficar cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos. (...) Tirar o 14º mês e o subsídio de férias, aumentar o IVA, facilitar despedimentos, aumentar a idade de reforma... Não vejo nada de bom, mas, se calhar, a curto prazo, não há outra solução. Mas a longo prazo não me parece que resulte (...)". Quem assim fala é Salvador Leal, um tipógrafo, citado, no JN de Domingo, por Ana Trocado Marques. Ele que, de acordo com o INE, tem as características típicas do trabalhador português. Quiçá por ser tipógrafo, lembra o operário letrado de Brecht.
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Quão interessante teria sido levar personagens destas ao encontro do Mais Sociedade, para justificar a designação, confrontando os organizadores com o que preocupa a maioria da sociedade, e ver que respostas teriam para as suas angústias! Os promotores da iniciativa, muitos dos quais têm, nas respectivas empresas, assessores para lidarem com os profissionais dos media sabem da apetência destes pelo sound bite. Ainda assim, não conseguiram evitar que as mensagens transmitidas passassem ao lado das inquietações do português comum (isto, quando não contribuíram para que as mesmas aumentassem - veja-se a forma leviana como foi comunicada a relação entre subsídio de desemprego e valor da reforma). Para um fórum dominado por gestores, convenhamos que não foi uma grande prova de competência nesta tentativa de incursão na política...
Num evento chamado Mais Sociedade houve Estado a mais. É verdade que o nosso Leviatão demonstra um apetite insaciável e uma vocação para a omnipresença intrusiva e para o monopólio perdulário. Mas nem tudo ele explica. A nossa baixa produtividade não se justifica apenas pelos custos do contexto ou pela baixa qualificação dos trabalhadores. Se não, como se justifica que, entre 17 países, as multinacionais a operar em Portugal apresentam um índice de qualidade de gestão que as coloca no 5º lugar quando, em média, as empresas portuguesas ficam no 5º lugar mas a contar de baixo. Tanto para ganhar ou para perder: abaixo de nós estão Brasil, Índia e China! É fácil assacar as culpas a uma entidade abstracta como o Estado! Pior mesmo será alimentar a ilusão que mudar a legislação laboral ou a da concorrência, ou facilitar fusões e aquisições, seria o toque de Midas que tudo transformaria. O rei acabou por perceber a importância das coisas mais comezinhas, mas cruciais para a felicidade no seu dia-a-dia. São essas as preocupações dos Salvador Leal deste mundo. É preciso subir a esse patamar. Identificar os caminhos para a esperança, não escamoteando dificuldades (eles percebem-nas). Sem respostas concretas não os ganharemos para esta batalha. Pior, podemos entregá-los, de barato, nas mãos do populismo.