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Está tudo a correr dentro da mais estrita normalidade. A publicação foi atacada, foram perseguidos e mortos os assassinos, morreram 20 pessoas (conto aqui os três assassinos, naturalmente) e a indignação foi mundial. Manifestámo-nos um pouco por todo o lado, houve milhões nas ruas e dezenas de dirigentes mundiais que desfilaram em Paris. Depois, como toda a gente foi Charlie, o número seguinte da publicação teve uma tiragem descomunal, de cinco milhões de exemplares. Desapareceram, afinal, como aquele pão quente que aqui há alguns anos se ia comer à saída das discotecas e sabia melhor do que tornedó Rossini.
Não foi só em França. Por todo o lado, assistiu-se à caça ao primeiro número do "depois", em que aliás participei e falhei de forma clamorosa. Agora, cada um vai à sua vida. E, daqui a seis meses ou menos, a publicação vai lançar uma campanha de assinaturas e pedir o apoio de todos para não fechar.
Como era afinal "a" capa que tantos esperavam? Bom, só moderadamente blasfema, com Maomé, mas um Maomé que não escandalizaria ninguém não fosse a circunstância de a sua representação ser proibida pelo Islão. O Profeta com uma lágrima, todo catita e simpaticão, a perdoar e perdoado.
Foi tudo tão previsível que até tivemos um desgraçado comentário de Ana Gomes no Twitter: "porquê insistir na representação do Profeta, que se sabe ofender os muçulmanos? Não estou de acordo. Não em meu nome".
Ana Gomes acha "insensato", "insensível" e, como aliás diz a seguir, tem todo o direito de discordar. E tenho eu o mesmíssimo direito de discordar de Ana Gomes quando discorda da capa do "Charlie Hebdo".
Se bem percebi, depois daquela grande maçada, depois daquela confusão tão aborrecida e tão cheia de sangue, os senhores cartunistas bem podiam ter feito uma capa mais fofa, mais respeitadora e menos ofensiva da religião. Um humor mais "sage", se calhar até podia ser com o Papa, porque ele é calmo, pode ser representado e está habituado. Mas com o Islão, se faz favor! Tenham juízo! Já sabem que "eles" se irritam com facilidade e mesmo assim insistem? Que coisa tão desagradável!
A minha discordância assenta, por isso e para começar, numa razão estética.
Há com certeza muitos que, como Ana Gomes, esperam que o humor seja "sensato" e "sensível", que não ofenda e não seja insistente. Eu sou daqueles que acham que se e quando o humor for assim já morreu e ainda não sabe. Não há limites? Haverá. No entanto, só vejo um, que é aquele a que chamo o humor cobarde e de que conheço um ou outro praticante: o que achincalha a parte fraca e indefesa, aquele que não tem voz, aquele em que o humorista não arrisca nada de nada mas adora parecer corajoso e irreverente. Porém, não duvido que Ana Gomes reconhece coragem àqueles que faziam o "Charlie Hebdo" e tombaram assassinados.
Em segundo lugar, a "lição" de Ana Gomes é ela mesma insensata e insensível. Não sei se era o que pretendia a senhora eurodeputada mas, olhando ao tempo e ao contexto, a mensagem que carreia é, para dizer o menos, ambígua. "Eles" deviam ter aprendido com a lição de 7 de Janeiro? Por ter havido aquele ataque, o mínimo que se esperaria era a sensatez de nunca mais representarem Maomé? É essa a ideia?
Poder-se-á argumentar que Ana Gomes viu longe e afinal tem razão. Saiu esta capa e logo houve muitas manifestações de muçulmanos em muitos países do Mundo a protestarem, de forma mais ou menos agressiva.
Eu sou Maomé!, Vivam os irmãos Kouachi (os assassinos)!, Que Charlie vá para o diabo!, foram alguns dos slogans. No Níger, até morreram quatro pessoas.
Porventura, os mais atrevidos serão capazes de estabelecer um nexo de causalidade nisto. Mais ou menos assim: houve mais uma capa com Maomé, houve manifestações de protesto. Morreram pessoas nessas manifestações e foram destruídas igrejas. Logo, se não tivesse havido capa, não tinham morrido pessoas e as igrejas ainda lá estavam. Logo, quem fez a capa causou, direta ou indiretamente, a morte de pessoas e a destruição de igrejas com as suas provocações gratuitas.
Pois, mas não é assim. Quem matou as pessoas foram outras pessoas. E quem destruiu as igrejas foi quem as atacou, não foi uma capa coisíssima nenhuma.
Se cedermos nisto, cobardes somos nós. E, qualquer dia, até pedimos autorização para dizer ámen e falamos baixinho para não incomodar.