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Antes servia-se a quente. Agora vai mesmo a frio e já azeda. A resposta europeia à crise humanitária de imigrantes e refugiados que nos batem à porta é como roupa -velha, cozinha reciclada, assim: aloira-se o alho em azeite e juntam-se-lhe as couves, a batata e o bacalhau da véspera, para remexer. Serve-se à mesa envergonhada de uma União que reergue muros e novas fronteiras.
Dez cimeiras e muitos meses depois, o acordo de última hora entre a União Europeia e a Turquia é bem o atestado da hipocrisia denunciada por António Guterres quando disse que traficantes e contrabandistas são os únicos que gerem a crise dos imigrantes e refugiados que demandam o velho continente à procura de paz, trabalho e pão.
Não querendo nem podendo resolver a crise humanitária que lhe bate à porta, a União Europeia decidiu subarrendá-la. Externaliza-a, contratando serviços em outsourcing à Turquia. E pagando por isso não menos que 6 mil milhões de euros por ano, à razão de 2 mil euros por cada imigrante recebido e processado pela Polícia turca, agora arvorada em guardiã das fronteiras exteriores da União.
O acordo prevê devolver a solo turco todos os imigrantes que cheguem à Grécia de forma ilegal, sem distinguir entre imigrantes económicos e refugiados com direito a asilo. Em contrapartida, e para lá da fatura financeira, a União Europeia compromete--se a receber, de forma legal, igual número de refugiados de entre os 2,7 milhões que já se acantonam nos campos da Turquia.
Depois de terem falhado todos os planos para dividir o mal pelas aldeias, distribuindo quotas de imigrantes por todos os países da União, este pacto é fruto da impotência europeia para acordar a gestão conjunta do direito de asilo e a desesperada urgência de travar a avalancha de refugiados que se espera com a chegada do bom tempo para a travessia do Mediterrâneo.
Em troca destes serviços de retenção, e livre para abrir ou fechar a torneira conforme aos seus interesses nacionais, a Turquia ganha, também com este acordo, o direito à total isenção de vistos de viagem para 75 milhões de turcos e, ainda, a garantia de reabertura das negociações para a sua adesão à União Europeia. Isto, num tempo em que, paradoxalmente, o regime turco de Erdogan mais se afasta dos requisitos básicos que se exigem aos sócios do clube, em particular o respeito pela separação de poderes e o cumprimento de direitos fundamentais como a liberdade de expressão ou o direito de defesa.
A União Europeia pode não ter perdido ainda esta guerra, mas já perdeu a razão moral.
*DIRETOR