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Fez esta semana 20 anos. Duas décadas que assinalam o início de mais um hediondo genocídio da nossa história recente e, provavelmente, aquele que o Ocidente olhou com mais indiferença. Foi no início de abril de 1994 e bastaram 100 dias para matar 800 mil homens, mulheres e crianças ruandeses. Só por pertencerem à etnia errada. Estima--se que 70% da população tutsi do Ruanda tenha sido liquidada e que cerca de 75 mil crianças ou jovens menores tenham passado à condição de órfãos em pouco mais de três meses. Perderam os pais para as balas e golpes de machete de hutus a transpirar ódio por todos os poros.
A matança generalizada - que os países ditos "desenvolvidos" viram indiferentes em peças secundárias dos telejornais - não foi obra de ódios momentâneos. Ela foi meticulosamente planeada e fermentada por rancores étnicos ancestrais pouco inteligíveis aos olhos de alguns e certamente inaceitáveis aos de todos. Ou de quase todos. Neste tempo em que, apesar de profundamente marcados pelas violentas recordações, os ruandeses parecem, finalmente, viver um momento festivo de reconciliação, continuam a pairar sombras sobre as atuações da França e da Bélgica (o antigo colonizador do Ruanda). Se não por participação direta, em que alguns acreditam, pelo menos por erros políticos que permitiram, por ação ou omissão, que um grupo dominante chacinasse um minoritário.
O presidente ruandês, Paul Kagame, multiplica-se em assertivas acusações contra a França, país que considera cúmplice da violência de há 20 anos. A resposta de Paris não se fez esperar e, numa inexplicável falta de habilidade diplomática, François Hollande recusou o convite para participar nesta semana na celebração da reconciliação do país, fazendo-se representar nas cerimónias por uma ministra. Por sinal, a única de raça negra no seu Governo.
O presidente francês perdeu mais uma oportunidade de pedir desculpas em nome da França pela atuação duvidosa do país no massacre ruandês e deu ainda mais argumentos a Paul Kagame, o presidente que antes de o ser liderava um grupo rebelde tutsi e que, a partir do exílio no vizinho Uganda, conseguiu chegar ao poder para, aparentemente, pacificar a única nação do Mundo onde as mulheres são maioritárias no Parlamento.
Nesta vergonha para a Humanidade, que urge não apagar da nossa memória coletiva, o peso de consciência não pode afetar apenas Paris. As Nações Unidas - ou seja, a organização que representa todos os nossos governos - admitem as suas responsabilidades na matança dos tutsis. O secretário-geral da organização, que também se juntou à festa da unidade, em Kigali, disse que o genocídio "é uma vergonha para a ONU", simplesmente porque, reconhece agora Ban Ki-moon, "os capacetes azuis foram retirados do Ruanda no momento em que mais eram precisos". Um emendar de mão que o país da "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" deveria assumir já. Sem demoras, nem hesitações.