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Em Agosto de 2022, Salman Rushdie, o escritor sobre quem o ayatollah Khomeini lançou uma fatwa, foi esfaqueado por Hadi Matar no palco de um festival literário.
O produto miásmico da fatwa envenenou a alma de quem agride e embebeu a lâmina. A faca que dá a arte ao chef, a faca que corta o pão que dá de comer à família, a lâmina que cuida no bloco operatório, o metal que salva, agora, encardido de ódio, é o instrumento que entra quinze vezes e quinze vezes procura o sítio onde está a morte.
“Faca” é o título do relato da agressão que Rushdie acaba de lançar. Lemos um escritor debilitado em busca de liberdade. Em 2022, a ameaça da fatwa já quase não o perturbava. Três décadas depois de ter sido lançada sem grandes resultados, Rushdie não esperava que a fatwa fosse uma faca. Mas a faca veio.
Lermos um escritor ferido e cansado era inevitável. Alguém cuja recuperação demorou meses e que não lhe salvou o olho feito gelatina sem préstimo e a mão feita pinça de mal agarrar. Mas lemos também um escritor ferido na literatura. O relato perde-se em episódios sem rumo, em nomes sem interesse excepto serem nomes que conhecemos e vacila numa declaração de amor a Eliza, mulher de Rushdie, que tem apenas a beleza inevitável de qualquer declaração de amor.
Falta-lhe o relato que o próprio Rushdie diz faltar: “Isto vai para além simplesmente da minha pessoa, é sobre um tema mais amplo”. Sobre a liberdade face ao fanatismo, sobre reconquistá-la. E sobretudo teria sido uma oportunidade extraordinária para a problematização do agressor através da vítima. A escrita da vítima em busca dos mecanismos do mal.
O que terá levado um homem de vinte e quatro anos, que nunca leu mais do que alguns parágrafos de Rushdie, a acusá-lo de “insinceridade” e a esfaqueá-lo para o castigar? Que força de ódio leva alguém a empenhar a sua própria vida para corrigir a insinceridade alheia? O problema está no âmago do fanatismo, que se alimenta de si mesmo - que prescinde de ler mais do que meia-dúzia de parágrafos - que apaga sem compreender. E o fanatismo está no âmago de tantos pequenos fanáticos do dia-a-dia, fora e dentro das redes sociais, com ou sem religião, que julgam sem conhecer, que matam sem matar, que obliteram o outro em si mesmos, e que precisam apenas do ódio para justificar o ódio.
Mas Rushdie preferiu ficar pelas minúcias compreensíveis de uma grande crise pessoal. Mesmo quando tenta abordar a questão do fanatismo, fá-lo num diálogo ficcional com o agressor que nunca deixa de ser Rushdie a falar com Rushdie.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia