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... se puderes pesquisa no YouTube a música "Chico Buarque Construção", ouve, e descobre quem amou daquela vez como se fosse a última/o último. Foi assim para quem esteve na ocupação/desocupação pacífica da escola da Fontinha no 25 de Abril porque há dias na vida em que apetece acreditar que o Mundo tem uma Lei com sentido. Mas se vires, no dia seguinte, a Polícia a arrancar lavatórios e sanitas de uma escola abandonada, ama as tuas convicções como se fossem as únicas e as últimas porque mesmo que acabes só não perdeste o tino e não te resignaste a ficar apenas a ver. Acreditaste para além da estupidez porque a estupidez é muitas vezes imposta por gente com o poder de chamar a Polícia e porque é sempre mais fácil não se sair do fato cinzento amestrado pela imagem pública. Julguei só poder ver em filmes o gesto demente de se cimentar portas de bibliotecas. O presidente da Câmara do Porto conseguiu finalmente entrar na história da cidade...
... mas medita porque há pequenos sinais: o juiz de Portalegre Beijou sua mulher como se fosse a última/a única, aquela mulher a quem tinha de julgar, carregada de três filhos e sem capacidade de pagar a casa, e que lucidamente a entregou ao banco arrendando uma outra mais barata. E viu então o juiz considerar o básico, o lúcido: se a casa vale hoje menos, o problema também é do banco que, para emprestar, avaliou o que lhe parecia coberto pelo risco da hipoteca.
E ela, a mulher protegida pelo juiz de Portalegre Amou cada filho seu como se fosse o único/o pródigo, porque são três miúdos e ela está sem marido e pode achar-se que ela pode não ter casa, mas não podemos pensar que tantos portugueses podem viver na rua, milhares, só com dívidas e alguns ainda sem emprego, depois de tanto banco ter ganho milhões em lucros de crédito à habitação e agora quererem transferir o risco da descida do imobiliário apenas para quem não consegue que a liquidação do imóvel seja pelo preço de outrora...
... esta massa de gente vive/não vive, trabalha/não trabalha, vê o Mundo a acabar como tudo fosse meteoricamente rápido e não percebe nada de troikas nem quer/pode perceber. Alguns amigos meus que trabalharam na construção são agora uma sombra de si porque, como dizia o líder da construtora de Braga, a DST, passamos de um Estado que politicamente fez da construção uma bandeira de criação de emprego "até à amputação de todo um sector". Sócrates Subiu a construção como se fosse máquina/sólido. E Ergueu no patamar quatro paredes sólidas/mágicas, muito mais mágicas que sólidas, Tijolo com tijolo num desenho mágico/lógico, que rebentou connosco. Os tijolos e o crash da dívida mundial...
... por isso talvez, no último sábado de manhã, um homem Atravessou a rua com seu passo tímido/bêbado, Rua do Bessa, Porto, estava Sol e nuvens, chegou à minha beira e disse, "Ó man, estás bacano!, dá aí um chapa cinco (e avança com o punho fechado para celebrar isto: uma pessoa que lhe estenda a mão) e diz: "Sou do Porto, man, tenho 33 anos e nunca saí do Porto menos uma vez que fui a Viana do Castelo!... tás a ver", e seguiu sem pedir nada, e isto fez-me lembrar a história que um amigo repórter me contou há alguns anos de uma mulher já velha que um dia subiu da Ribeira à Estação de São Bento, e isto tinha sido o mais longe a que foi na vida.
... restam-nos hoje Homens com Seus olhos embotados de cimento e lágrima/tráfego que nem sequer sentaram Pra descansar como se fosse sábado/príncipe, e comem Feijão com arroz como se fosse um príncipe/máximo.
E ele, o português triste, no meio de tudo isto Bebeu e soluçou como se fosse náufrago/máquina
Dançou e gargalhou como se ouvisse música/o próximo
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado/música
E flutuou no ar como se fosse um pássaro/sábado
E se acabou no chão feito um pacote flácido/tímido
Agonizou no meio do passeio público/náufrago
Morreu na contramão (ou no Pingo Doce) atrapalhando o tráfego/o público.
O problema não é a Esquerda ou a Direita. É o arbítrio em nome da democracia.
* Síntese do nome da peça de Manuel António Pina em cena no Teatro da Vilarinha, no Porto, com Rui Spranger